Nunca uma reunião ministerial da OMC se inicia com tanta certeza de fracasso como esta de Hong Kong, para rever a eterna questão sempre adiada do protecionismo agrícola. Ela vai acabar antes mesmo de começar, porque a União Européia (UE) já decidiu e afirmou que não muda nada e não cede nada na sua política agrícola insensata, e para si mesma onerosa; é uma política baseada em princípios irracionais de independência, soberania e grandeza interna, diante dos quais se torna absolutamente impossível argumentar.
O GRUPO DA INSENSATEZ
A França, que lidera o “grupo da insensatez”, junto com Itália, Espanha e outros menores, impôs seu ponto de vista à comunidade: sem reforma, sem mudança, pois o consumidor europeu é suficientemente abastado para comprar mais caro produtos agrícolas internos, mesmo sabendo que, se importados, seriam melhores e mais baratos.
Diante de reações lógicas da Grã-Bretanha e Alemanha, as ministras Catherine Legarde, de Comércio, e Catherine Colonna, representante do país na UE, disseram que a França não está só; tem o apoio de todos os países da comunidade. Mas não esclareceram que esse apoio só foi obtido após intensa luta interna em que a França saiu batendo a porta num categórico ou nós ou nada. Ganhou o nós.
ACORDO? QUE TAL 2010?
E é com essa posição inflexível de “não cedemos nada” que a UE chega a Hong Kong, disposta a impedir qualquer acordo substancial; vai jogar as negociações para além de 2010, quando elas completarão… 15 anos de fracassos e adiamentos eternos.
“O que se fez foi empurrar as coisas para frente… estamos nisso há algum tempo. Hong Kong é a terceira ou quarta recalibragem (na rodada)”, disse, realista, o embaixador brasileiro Clodoaldo Hugueney, ao jornal Valor. Chega de extensas e inúteis reuniões, pois já sabemos que tudo vai dar em nada!, dirá o leitor.
Para que perder mais tempo e uma coluna? Vamos a algo mais útil! Antes, peço sua atenção para respondermos a duas perguntas finais: a política agrícola européia é mesmo irracional? E, nesse caso, por que a insistência férrea de mantê-la?
A resposta oportuna foi dada pela revista The Economist, em número que estará nas bancas na terça-feira, mas pode ser acessado no site www.economist.com. O título diz tudo: As loucuras agrícolas da Europa. E, na Europa, domina a França eterna de De Gaulle, para quem “um país que não pode alimentar a si mesmo não é um grande país”. Pobre Japão e pobre China que importam quase tudo para comer! Simples anões impotentes no cenário mundial…
LOUCURA, POR QUÊ?
Na exposição, baseada essencialmente em dados bem conhecidos da própria UE o Economist, que tem o mérito de reuni-los no artigo, mostra, eu diria prova, de forma incontestável que é loucura sim. Eis o que dizem as estatísticas oficiais da própria comissão européia.
1 – O custo dos subsídios agrícolas na UE é 40 bilhões, US$ 47 bilhões – ou 40% de todo o orçamento da comunidade.
2 – loucura porque esses subsídios são pagos pelos contribuintes que, em troca, ficam obrigados a comprar produtos internos a preços consideravelmente mais altos, pesando de uma forma ou outra na inflação;
3 – loucura pois agricultura e agropecuária representam só 3% do PIB europeu de ordem de US$ 10,5 trilhões, e menos de 2% da força de trabalho dos 25 países da comunidade ampliada.
VAI TUDO PARA OS RICOS!
Querem mais loucura? Pois aqui vai. Nada menos que 80% dos subsídios vão para os 20% dos produtores mais ricos e as gigantescas empresas européias do agronegócio. E sabem quem está entre os 30 ricos mais beneficiados? O príncipe Albert de Mônaco! Ele recebe mais de 390 mil, mais de US$ 430 mil por ano, o que representa mais do que a média recebida pelos 180 mil agricultores menores; ou 40% do total.
FRANÇA LIDERA A LOUCURA
Já existe uma tímida reação na própria comunidade contra essa política insensata, irracional, mas a França mais uma vez fechou questão. Na verdade, lembram nossos colegas do Economist, a política agrícola comum da UE é “uma festa para a França”; ela é de longe, mas longe mesmo, a maior beneficiária; seus agricultores receberam em 2004 nada menos que 9,8 bilhões de um orçamento agrícola de 43,6 bilhões. É seguida, à distância, pela Espanha, 43 bilhões; Alemanha, 60 bilhões. Ao mesmo tempo da reunião em Hong Kong, a comunidade se reúne para discutir o orçamento agrícola para 2006, com proposta de reforma de Tony Blair. Também aí nada deve sair, pois a França já declarou que “aceitamos as reformas de 2002 e nada pode mudar até 2013”.
Cotas, impostos, barreiras alfandegárias escandalosas de mais de 100%, financiamentos com juros paternais, preços mínimos artificiais e protetores… Enfim, toda a couraça protecionista será mantida e é inegociável em Hong Kong.
Não adianta o Brasil atender e ceder nas áreas de produtos industriais, serviços, propriedade intelectual; as reivindicações européias, se atendidas, não modificarão a política agrícola da comunidade, que não muda. Mas por quê? Vamos ouvir os franceses; para eles, a agricultura não é apenas uma atividade econômica, mas “cultural”. Quem afirma isso seguindo religiosamente De Gaulle é o próprio governo, é Chirac, nas palavras da ministra Legarde, “a agricultura faz parte da nossa identidade”, da nossa cultura. Planta e colher é como pensar, escrever, pintar, compor…”
Ao lado, há o poderio político e econômico das grandes empresas do agronegócio, que, lembra o Economist, elegeram 8,5% dos senadores e têm voz ativa no Parlamento, incapaz de não defender a soberania e a grandeza nacionais, como se, importando açúcar ou frango do Brasil, a França ficasse diminuída.
É irracional, sim, extremamente irracional, mas é essa a posição européia que o Brasil e os países agroexportadores vão enfrentar em Hong Kong. É a vitória da insensatez agrícola européia que o Brasil só poderá compensar associando-se a outros países poderosos em vez de trazer a Venezuela de Hugo Chávez para o Mercosul, e desprezando a Nafta dos EUA, do México e do Canadá. Estamos soberanamente sós num mercado e num mundo que se globalizam. E, para nós, Hong Kong não significa nada; será uma reunião que acaba antes de começar.