O programa do biodiesel, no qual o Governo Federal aposta pesado, corre o risco de fracassar pela avidez de empresários interessados em resultado imediato. Pior: se o programa que foi bem desenhado pelo Ministério do Desenvolvimento e Reforma Agrária fracassar, quem sofrerá mais não serão os empresários que investiram na montagem de fábricas de biodiesel, mas a imensa massa de agricultores familiares que o Governo pretendia incorporar à economia. O risco para o programa é o virtual monopólio de uma única empresa que, nos dois últimos recentes leilões da Agência Nacional de Petróleo (ANP) para compra de biodiesel futuro, açambarcou 72% do total oferecendo preço de dumping, levando a um desestímulo total as outras 17 empresas que participavam do leilão.
Para entender a gravidade do fato, é preciso levar em conta que o programa federal de biodiesel foi elaborado com tríplice objetivo: reduzir a dependência brasileira do diesel importado, reduzir a emissão de gases perniciosos, já que o biodiesel limita o gás carbônico liberado na atmosfera, e também fixar o homem ao campo, criando oportunidade ao assentado de não só produzir, mas vender o produto da terra que recebeu.
No momento de implementar o programa, entretanto, a concentração das compras em benefício de uma única empresa tira qualquer estímulo dos produtores pequenos e médios que têm buscado garantias e empréstimos para ampliar suas fábricas e produzir a quantidade de biodiesel de que o Brasil necessita. Quando uma única empresa usa seu poderio econômico, suas relações institucionais e o animus de exterminar a concorrência, as dezenas de milhares de pequenos produtores rurais — que já tinham sido contatados e que estavam certos de ter mercado certo para seu girassol, soja e mamona — são os que serão prejudicados. No Rio Grande do Norte, por exemplo, já se desenha um início de crise, em que pequenos produtores perdem a mamona estocada cuja venda não foi realizada. É gente que acreditou no Governo, nos discursos do presidente que sacudia vidrinhos de biodiesel prometendo a redenção que não veio.
Para se ter uma idéia do envolvimento possível da agricultura familiar no programa, os 72% de biodiesel adjudicados para uma única empresa devem representar, pelas regras do chamado selo combustível social, que determina a percentagem de participação da agricultura familiar na oferta de matéria-prima para biodiesel, o emprego de 130 mil famílias de lavradores, ou seja, 520 mil pessoas. Isso se contabilizarmos apenas 2 filhos para cada casal de agricultores, o que representa um índice de natalidade de primeiro mundo.
É virtualmente impossível que uma única empresa coordene essa massa imensa de mão-de-obra espalhada por vários estados. Por isso, o que acabará ocorrendo é que quando se aproximar a data da entrega do biodiesel, na impossibilidade de conseguir reunir o produto de milhares de minipropriedades e de coordenar a complexa logística necessária, a soja ou qualquer outra matéria-prima será adquirida em grandes lotes dos megaprodutores. Isso irá frustrar a boa intenção do Governo Federal, sacrificada mais uma vez por aqueles que querem o máximo ganho no menor tempo possível.
O biodiesel será efetivamente produzido, a percentagem mínima a ser adicionada ao diesel será cumprida, mas a dívida social brasileira não será reduzida, não diminuirá a tensão social no campo — e tudo porque mais uma vez, no Brasil, ocorre o que já verberava há quase dois séculos o escritor norte-americano Mark Twain, ao referir-se à área do Mississipi, que ainda não difere tanto da região do São Francisco: “Em questões de Estado, olvida-se as moralidades e age-se pensando apenas nas legalidades”, ou seja, se é legal, será feito, mesmo que seja injusto e prejudicial.
É hora, portanto, de a autoridade federal impor um limite efetivo aos que querem tirar proveito exclusivo de um programa adequado e urgente para o País. Que a autoridade reguladora faça aquilo para que foi criada, regule, e impeça que um programa feito para o Brasil inteiro acabe tendo um único dono.