
Em entrevista exclusiva, o pesquisador Francisco Nigro traz detalhes do desenvolvimento da tecnologia, que completa 10 anos em 2013. Nascido em Bocaina, interior de São Paulo, Francisco Nigro já figura hoje no rol dos principais nomes da indústria automobilística brasileira. Professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, ele é um dos “pais” do carro flex. A tecnologia completa 10 anos em 2013, desde que o primeiro modelo, um Volkswagen Gol, com tecnologia da Magneti Marelli, chegou às ruas, em março de 2003.
A partir de então, de acordo com números divulgados pela Anfavea – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, o volume total de veículos flex licenciados no Brasil chegou a aproximadamente 18,2 milhões em novembro de 2012.
Ao lado de Pedro Camargo Neto, outro importante nome no processo de implementação da tecnologia, Nigro foi homenageado no Prêmio BestBIO 2013, como “Honra ao Mérito em Biocombustíveis” (veja cobertura completa da premiação a partir da página 92).
Nesta entrevista, o pesquisador conta detalhes de seus estudos, lutas políticas e busca pelo apoio das usinas para emplacar o carro flex. Confira:
JornalCana: Conte-nos um pouco da sua carreira.
Francisco Nigro: Fiz minha vida toda em dois lugares. Inicialmente fui trabalhar no IPT — Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – na fabricação de máquinas de usinagem, e depois comecei a dar aula na Politécnica. Era tempo integral no IPT e parcial na Poli. Depois de 40 anos me aposentei mas continuo dando aula.
Como surgiu a ideia do motor flex?
Quando voltei do Canadá, onde fiz doutorado, estava começando o programa do álcool no Brasil e o IPT resolveu criar um grupo para ajudar a desenvolver combustíveis renováveis. Recrutamos engenheiros recém-formados na Poli para ajudar. Como eu era chefe do laboratório de máquinas e os profissionais não tinham onde ficar, acabaram entrando no meu grupo. Mas motores não eram minha especialidade, eu lidava com máquinas. Quando os jovens apareceram comecei a fazer e supervisionar relatórios. Então precisei me dedicar aos motores. Estudei, aprendi e gostei.
Como foi a aceitação da tecnologia no país?
Nessa época, em 1977, o Governo Federal queria que as montadoras fabricassem veículos a álcool e elas se mantinham reticentes quanto a isso. A tecnologia já existia na época, já que conversões eram feitas. O primeiro caso foi o de um fusca, que era muito “gastão”, e com a conversão, compensou pela relação custo-benefício. O Governo então criou o “Centro de Apoio Tecnológico”, formado por institutos e universidades espalhadas pelo Brasil todo, onde discutíamostecnologias de motor. Ganhamos até um dinamômetro para fazer testes. Nós ensinávamos as retificas a fabricarem os motores a álcool, elas faziam, nós testávamos e então se homologava a empresa a fazer a conversão do motor. Os postos só abasteciam os carros convertidos oficialmente.
Como o governo se posicionava em relação ao álcool?
Eles mantinham o preço do álcool 50% menor que o da gasolina, então todo mundo queria usar. Nessa época, o país estava passando por problemas financeiros, gastava quase tudo para importar gasolina. O preço estava ruim, havia o medo de faltar, e com tudo isso, ninguém queria comprar carro a gasolina. A maioria transformava seus veículos para abastecer com álcool. Foi uma época importante, pois aprendemos muito com os problemas que apareceram.
Quando o cenário começou a mudar?
Em 1979, mais ou menos, a pressão nas montadoras aumentou muito. A população queria o carro a álcool. A Fiat tinha montado uma fábrica em Minas Gerais, mas ninguém comprava carro, a situação econômica do país não permitia. Foi então que surgiu o primeiro carro a álcool, o Fiat 147.
O senhor citou reuniões onde difundia-se o conhecimento. Como funcionavam especificamente?
Os encontros do Centro de Apoio Tecnológico continuaram no país inteiro. A cada três meses nos reuníamos para falar sobre as novidades, descobertas e inovações. Quando as montadoras resolveram fabricar motores a álcool, essas reuniões passaram a ser uma espécie de simpósio, e com isso, foi crescendo o movimento pró-álcool.
Qual foi o momento mais difícil?
Depois que o preço do petróleo começou a cair todos os combustíveis alternativos entraram em baixa. Sobrou o álcool, que não “morreu” por pouco. Passamos por uma fase muito ruim. Por volta de 1999, o preço do álcool despencou pela falta de demanda. Foi então que começamos a estudar uma saída para o álcool, surgindo o carro flex.
E como difundiram a novidade?
Aconteceu um seminário dos 100 anos do IPT, onde chamamos o pessoal dos governos Federal e Estadual, montadoras e representantes do setor sucroenergético. Uma semana antes alguns usineiros se reuniram e decidiram não apoiar o flex. Ainda assim fizemos o seminário, com informações trazidas do trabalho feito nos EUA. Depois comecei a ser convidado para falar em Brasília, onde explicava o que era possível fazer e qual o rendimento. Foi neste período que o pessoal de marketing da Volkswagen detectou uma demanda pela tecnologia, produzindo, em seguida, o primeiro modelo. Foi pura jogada de marketing.
Em algum momento pensou que não daria certo?
Sempre tive convicção que traria resultado. Na minha maneira de ver o maior desafio não foi tecnológico. Claro que houve alguns aspectos, mas nada tecnicamente muito difícil.
Como avalia a situação do etanol atualmente?
Complicada. O governo tenta puxar uma recuperação econômica pelo consumo, tendo como ação a manutenção do preço da gasolina. Na minha maneira de ver, nenhuma economia aguenta este tipo de medida. Não dá para segurar, é preciso investimento. Outra questão é o preço da terra, que subiu muito no país. Isso afetou diretamente os investimentos na parte agrícola. É absurdo o patamar em que se encontra os custos de produção.
Qual a saída?
O Governo assumir um plano de longo prazo, com regras claras e previsibilidade. Não dá para continuar com o setor estrangulado como vemos hoje, precisando investir e não encontrando meios para isso.