Crato. Os poucos engenhos do Cariri que resistiram à crise da agroindústria canavieira iniciaram a moagem. Dos quase 200 engenhos que funcionaram no Cariri na década de 60, restam somente dez. Destes, apenas quatro estão operando. A falência dos engenhos deixou marcas profundas: riqueza, prestígio, trabalho, pobreza, aroma e saudade, Entre a vida e a morte, os sobreviventes procuram alternativas para continuar rodando. Uma delas é a fabricação de açúcar mascavo, um produto orgânico extraído do caldo da cana-de-açúcar, que substitui o açúcar branco e refinado.
É o caso do Engenho São Pedro, localizado na saída de Barbalha para Missão Velha. Desde o ano passado que a rapadura foi substituída pelo açúcar mascavo. A iniciativa é do engenheiro civil Everardo Sampaio, que tem um amor telúrico pela atividade. Ele cre! sceu na bagaceira do Engenho São Pedro, de seu pai. “Reativar o setor é uma atividade saudosista”, justifica Everaldo, acrescentando que a fabricação de rapadura dá prejuízo. “A gente enfrenta a falta de mercado e os cheques sem fundos”, afirma.
A solução, portanto, segundo Everardo, foi fabricar o açúcar mascavo que é vendido para uma empresa de Goiânia. Everardo diz que, “apesar da perseguição do governo, que coloca fiscalização na porta do engenho, exigindo até carteira de habilitação para tratoristas, a iniciativa vem dando certo. O engenho ainda não entrou para o cemitério de fogo morto que existe na região do Cariri”, comemora o produtor.
Sabores variados
O Engenho Padre Cícero, localizado no Sítio Bulandeira, município de Barbalha, mantém a fabricação de rapadura, mas está inovando com a venda de batida, um produto derivado do mel, de doce refinado, que é negociado, principalmente, nas épocas de romarias de Juazeiro. Outra alternativa foi a fabricação de ! tabletes de rapadura, uma espécie de bombom com vários sabores.
O proprietário Antônio Sampaio diz que, além da falta de mercado, enfrenta outro problema: é a fiscalização do Ministério do Trabalho, que exige o cumprimento de legislação concernente ao setor.
Na verdade, o maior desafio é a falta de mercado. O médico Napoleão Tavares Neves, que também foi criado na bagaceira do engenho de seu pai, Joaquim Neves, no município de Porteiras, diz que, na época do apogeu da rapadura, Barbalha era a “capital nacional” do derivado, com uma produção de 300 mil cargas por safra, 30 milhões de unidades. Hoje, de acordo com Antônio Sampaio, não chega a 40 mil cargas por ano. Cada carga corresponde ao total de 100 rapaduras.
O Cariri nasceu na sombra dos engenhos de rapadura, ouvindo o apito da caldeira e sentindo o cheiro gostoso do mel quente. Junto com este saudosismo, floresceu também uma aristocracia rural que ainda hoje apresenta resquícios. A professora Miralva Ferreir! a Guedes Pereira é pesquisadora e agente cultural do Instituto de Memória do Povo Cearense (Imopec). Segundo ela, “o trabalho nos engenhos desenvolvia várias relações entre os grandes proprietários e os trabalhadores” (escravos, moradores e assalariados).
Os bens materiais do senhor de engenho e a pompa de seus sobrenomes, segundo Miralva, eram repassados por herança aos filhos, garantindo, assim, a permanência do poder e submissão dos trabalhadores.
A pesquisadora afirma que essas práticas continuaram até a primeira metade do século XX, quando filhos de donos de engenhos casavam-se, também, com filhas de senhores da mesma atividade econômica. Além disso, pertenciam aos mesmos partidos políticos.
“Os filhos de donos de engenhos estudavam nas grandes capitais e nas melhores instituições, ou seja, eram famílias aristocráticas e viviam como tal”, afirma Cecília Sampaio Monteiro, formada em Economia e neta, filha e esposa de donos de engenhos no Crato.
Ao cita! r alguns depoimentos de trabalhadores e proprietários do setor, Miralva diz que “ainda hoje temos, no Cariri, alguns fatores que impedem o fortalecimento da agricultura e o entendimento entre proprietário e trabalhador”. O mercado nacional sobressaindo-se sobre o mercado regional, segundo afirma, é fator decisivo para o enfraquecimento do cultivo da cana-de-açúcar e a produção nos engenhos.
A rapadura foi substituída por doces industrializados e a cachaça brejeira cedeu espaço para bebidas com menos teor alcoólico, tidas mais sociáveis, como a cerveja. O secretário de Desenvolvimento Agrário do Estado do Ceará, Camilo Santana, está apostando na instalação de mini-usinas para fabricação de álcool e cachaça na tentativa de amenizar a crise do setor. A expectativa entre os produtores é grande.