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Embriaguez estratégica

O Brasil tem a matriz energética mais limpa do planeta. Produzimos energia elétrica a partir da água, da cana, do sol e dos ventos. A nossa gasolina contém 24% de álcool, 3 milhões de veículos rodam com álcool puro e em breve poderemos introduzir o uso do biodiesel, a partir de óleos vegetais.

É um cenário de sonhos para a Europa, Estados Unidos e muitos outros países e continentes. Mais que isso, é uma situação em plena sintonia com as decisões do Protocolo de Kyoto, ligadas ao combate do efeito estufa, cuja ratificação pelo Brasil já está em andamento no Congresso Nacional.

No entanto, não há motivos para comemorar. Parece recorrente a baixa auto-estima nacional e a incapacidade de perceber nossas virtudes. Digo isso em razão de uma série de ameaças a esta matriz limpa e renovável: o grupo técnico do governo federal, responsável pela revisão da matriz, tem projetado um crescimento das fontes fósseis em detrimento das renováveis; começa a surgir um forte movimento para introdução de veículos leves movidos a óleo diesel; há um claro incentivo ao uso do gás em veículos e em termelétricas; continuam ridículos os índices de produção de veículos a álcool, o que representa uma queda de consumo de 300 milhões de litros anos de álcool hidratado, o que pode vir a comprometer o equilíbrio do maior exemplo de desenvolvimento ecologicamente sustentado do mundo, representado pelo complexo de produção de cana, açúcar, álcool e geração de energia elétrica do Brasil.

Quanto ao grupo técnico da matriz energética, o mínimo a falar é que sua visão entra em choque com a ratificação do Protocolo de Kyoto, cujo princípio básico determina a desaceleração do uso de combustíveis fósseis e incentivos claros às fontes limpas e renováveis.

O uso de diesel em veículos leves é um destes absurdos lesa-pátria que deveriam corar de vergonha quem ousa fazer tal proposta. O Brasil não é auto-suficiente na produção deste combustível, importa quase 5 bilhões anuais do produto, cuja má qualidade pode ser percebida a olho nu pela fumaça preta dos ônibus e caminhões que estão aí a sujar nossos ares. Antes que alguém diga, lembro que é possível melhorar a qualidade do diesel e torná-lo tão bom quanto o da Suécia: basta queimar milhões de dólares em divisas que não temos para melhorar o refino e permitir que o diesel ocupe um espaço muito bem ocupado pelo álcool que é limpo, renovável e gera empregos a milhares de brasileiros.

O uso de gás em veículos e termoelétricas é uma outra questão que deve ser analisada com cautela. Apesar de contribuir para o efeito estufa, tal qual o diesel, ele reduz a poluição local. Mas sua utilização no Brasil deve ser muito bem planejada, pois não temos o produto e de acordo com diversos cientistas são limitadas as reservas de gás da Bolívia.

Mas, o maior absurdo é o descaso total com o álcool combustível e com a atividade canavieira no País. Eficiente, dono dos menores custos de produção mundial de açúcar e álcool, este setor está projetando um grande crescimento para os próximos anos. E o que poderia ser uma maravilha para o país em termos de emprego, impostos e geração de divisas, pode se tornar uma tragédia. Isto porque está única e exclusivamente na mão do setor privado a conquista de novos mercados que dêem conta das produções adicionais dos próximos anos.

Entendo que o governo não deva intervir na microeconomia e gerenciar atividades, mas é fundamental que um governo digno do nome tenha noção do seu patrimônio estratégico e o fortaleça como seguro obrigatório para o futuro. Só cego não vê que o setor sucroalcooleiro é estratégico para o Brasil, em razão de contribuições positivas em diversos aspectos: econômicos, pela capacidade de geração de divisas na exportação de álcool e açúcar e pela substituição de importações de petróleo e óleo diesel, proporcionadas pelo álcool combustível e pela co-geração de energia elétrica a partir do bagaço de cana; sociais, pela enorme capacidade da atividade gerar empregos descentralizados no campo, com reflexos ilimitados no progresso econômico de centenas de municípios brasileiros; e ambientais por sua contribuição para a redução da poluição local – o álcool anidro diminui a quantidade e nocividade das emissões da gasolina e o carro a álcool é 20% menos poluidor que um similar a gasolina, com o mesmo desenvolvimento tecnológico – e da poluição global – a atividade canavieira seqüestra carbono da atmosfera e contribui para a redução do efeito estufa.

É preciso, portanto, uma política clara de indução de mercado para o álcool combustível tanto no nível interno como no externo. Externamente, o governo precisa se engajar mais decisivamente na quebra das barreiras protecionistas e num trabalho de difusão do uso e produção de álcool, para que ele se transforme numa commodity ambiental internacional. Internamente, urge retomar a produção de carro a álcool e para isso são necessárias políticas públicas efetivas, como por exemplo realizar uma diferenciação de IPI entre os carros populares a álcool e os movidos a gasolina, assim como já existe nas categorias acima de mil cilindradas.

Todos os países cuidam dos seus tesouros com carinho. A agroindústria canavieira é nosso ouro verde e nossa porta de entrada para o Grupo dos 8. Espero que a baixa estima tupiniquim não turve nossa visão histórica e possamos aumentar o peso da biomassa na matriz energética brasileira, passo fundamental para que o mundo o faça também.

Arnaldo Jardim, deputado estadual/E-mail: [email protected]