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Círculo virtuoso do agronegócio deve perdurar em 2004

O setor de agronegócios teve um período de “graça” no país em 2003 e não há indicações de que esse ciclo virtuoso será interrompido. Essa é a avaliação do professor Guilherme Dias, especialista em agronegócios da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Para Dias, a correção cambial a partir de 1999 é um dos motores desse ciclo.

Mas nos últimos dois anos, a China também contribuiu para o avanço do setor agrícola brasileiro, fazendo do país um de seus principais fornecedores de soja. “Os chineses perceberam que era a oportunidade de diversificar suas fontes de suprimento”.

Depois de um ano de ganhos, Dias avalia que 2004 deve ser um período de manutenção da rentabilidade no setor agrícola. O que, na sua opinião, “é o melhor dos mundos”. E o comportamento do dólar deve contribuir para esse cenário. Como a moeda americana está se desvalorizando em relação a outras divisas, as recentes altas de preços em dólar dos produtos agrícolas não significam elevação de preços para o consumidor final. Isso é mais um fator que favorece as exportações brasileiras. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Quais as perspectivas dos agronegócios brasileiros neste ano?

Guilherme Dias : Acho que estamos num período de graça no setor agroindustrial. O motivo fundamental é a correção do câmbio desde 1999. Há ainda outros fatores que contribuíram e, nesses últimos dois a três anos, tem a surpresa da questão chinesa. Quando os Estados Unidos negociaram a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), parecia haver um arranjo que iria beneficiar muito mais os Estados Unidos do que o Brasil. O resultado final é o contrário disso. Acho que os próprios chineses, num certo sentido, perceberam que era a oportunidade de diversificar suas fontes de suprimento, obtiveram preços mais baixos e condições melhores. A China é a novidade. O resto são processos que vêm vindo. É uma combinação muito boa e acho que não existe nenhum argumento forte que indique que esse ciclo bom vai acabar.

Valor: Isso se aplica a todos os setores do agronegócio?

Dias : Não. Os mercados individuais de produtos vão sempre ter as suas crises. É o caso do café, um setor em crise porque não fizemos uma definição completa, consistente, de nossa nova estratégia no mercado internacional. Tivemos alguns engasgos, como o plano de retenção. E volta e meia notamos que a estrutura da economia cafeeira ainda é muito antiga para os padrões de hoje. São grupos de pressão que ainda tentam obter favores do governo ou políticas que são inconsistentes com a idéia de que o Brasil é agora um operador independente no mercado de café e que atua agressivamente para reconquistar uma parcela maior do mercado internacional.

Valor: Quando diz que não vê um fim para esse ciclo positivo na agricultura, quer dizer que a produção nacional de grãos deve continuar a avançar?

Dias : Sim. Porque estamos num ciclo em que não existem tendências de superoferta, não há acumulação de estoques. Muito pelo contrário. Estamos indo para um sistema de oferta global em que ninguém quer servir de colchão de estabilização para o resto do mundo. Todos os grandes operadores – União Européia, Estados Unidos e China – estão reduzindo seus estoques de estabilização internos, todos passando a ter um sistema de vendas ou compras pulverizadas no mundo inteiro, que é o caso chinês.

Valor: A China continuará demandando soja do Brasil?

Dias : Sim. Há todas as indicações de que as tomadas de decisão lá dentro da China são no sentido de continuar esse processo. Se os EUA previam que com a entrada da China na OMC eles seriam os grandes fornecedores, como foram em 1999 e 2000, a situação está completamente invertida. No setor de soja, Brasil e Argentina assumiram o papel de grandes fornecedores.

Valor: Na sua avaliação, que vantagem tem o Brasil em comparação com os Estados Unidos?

Dias : Imagino que seja preço e sempre existem questões de qualidade de produto. Há ainda a questão sempre importante da localização. A China está no Hemisfério Norte. Então, a safra dela coincide com a americana. O problema é o que fazer na entressafra. Na outra época do ano, o Hemisfério Sul é o ofertante. Mas a China serve para explicar [o avanço] os dois últimos anos. Para o futuro, o dado importante é que não existe acumulação de estoques em nenhum lugar do mundo, e qualquer processo de crescimento da economia mundial será positivo para o Brasil.

Valor: O constante crescimento da soja, que já está tomando áreas de pecuária e de outras culturas, é motivo de preocupação?

Dias : As análises de longo prazo mostram que os sistemas nos últimos 100 anos concentram a agricultura em linhas principais de produção. Então não é de estranhar a nossa tendência para a soja. Não é a pecuária que está perdendo espaço para a soja. Estamos vendo um processo de recuperação das áreas de pastagens decadentes, com lavoura de soja, num sistema de rotação. Começamos a ver uma tremenda transformação tecnológica na pecuária de corte, que deve gerar uma produção maior de carne bovina. Não é uma competição que diminui a oferta de carne bovina, mas é uma integração dos dois sistemas de produção com a ampliação das duas ofertas.

Valor: O senhor sempre se mostrou preocupado com a redução do plantio de culturas como milho, arroz e feijão em detrimento da soja. Isso deve continuar a acontecer?

Dias : A produção está caindo, mas não estamos indo para um padrão de preços que vá impedir o abastecimento desses produtos. Porque a demanda final por feijão, por exemplo, está caindo muito mais. No caso do milho, enquanto tivermos diferença de taxas de juros em relação ao mercado internacional, não há a mínima possibilidade de imaginar aqui dentro uma oferta mais regularizada ao longo do ano. Custa para nós muito mais garantir a oferta de milho na entressafra porque não há nesse setor o peso das exportações que existe na soja. Assim, não é possível financiar a estocagem, o processo de comercialização com o giro da exportação como ocorre com a soja. Mas do ponto de vista técnico da produção de milho no Brasil, ocorreu uma evolução fantástica nos últimos anos.

Valor: Voltando à soja, nos últimos dois anos o Brasil está exportando muito mais soja em grão – até porque a China demanda mais esse produto. Dá para mudar isso?

Dias : Se existe protecionismo, essa é a outra face do protecionismo na cadeia agroindustrial. Os europeus defendem a sua capacidade de processar soja e de produzir o farelo e o óleo lá dentro, e os chineses fizeram o mesmo.

Valor: Mas isso vai numa direção oposta à meta de se exportar produtos com maior valor agregado.

Dias : Sim. Mas essa é a realidade. Nós aceitamos a China com essa política. Quando ela entrou na OMC, ela falou que ia ter durante oito, nove anos, uma política de ampliação da capacidade de industrialização desses produtos internamente.

Valor: Isso não é negativo para o setor de soja nacional?

Dias : Nâo é negativo. Seria melhor se fosse de outro jeito. Mas ainda assim continuamos expandindo o sistema. E há outra coisa: nos anos 70 e 80, o setor expandiu a capacidade de processamento de soja até na frente da produção. O que aconteceu? Ficamos com com tremenda capacidade ociosa. Isso tem custo, desorganiza o setor, gera uma forte competição entre os grupos para conseguir a matéria-prima, e determinou que desaparecessem todos os grupos nacionais do setor porque eles carregavam capacidade ociosa elevada. O que nós temos hoje é uma estrutura muito mais saudável do setor de soja do que tínhamos há 10, 15 anos. Porque tenho de fazer com que as flutuações do mercado internacional sejam compensadas pelas exportações do produto em grão, tenho de exportar a volatilidade para o resto do mundo.

Valor: O que o espera para os preços agrícolas em 2004?

Dias : Acho que o fator dominante é o dólar. Nós temos uma combinação muito feliz: o dólar está se desvalorizando em relação à maior parte das moedas dos países que são compradores líquidos de produtos agrícolas no mercado internacional. Isso significa que uma parte dessa alta de preços que estamos vendo em dólar não é elevação de preços para o consumidor final desses produtos. Assim, de fato nossa valorização do real é relativa, é bem menor do que em relação às terceiras moedas. Então os preços em dólar estão melhorando e para nós isso representa uma dupla vantagem. Assim, a rentabilidade para 2004 está garantida.

Valor: Então 2004 deve ser novamente um ano de aumento de rentabilidade e de preços mais altos?

Dias : De aumento de rentabilidade, não diria. Mas acho que o pedaço que já está comprometido com o abastecimento dos mercados doméstico e internacional está apresentando um quadro de manutenção dos padrões vividos nos últimos dois, três anos. Estamos no melhor dos mundos. É um quadro de manutenção dos preços relativos favoráveis. Não subestimem o que estou falando (risos). Porque esse quadro é tão favorável que manter a situação é maravilhoso.

Valor: O ano passado foi de restrições de recursos no orçamento do Ministério da Agricultura. Dessa forma, como o avalia os instrumentos de política agrícola?

Dias : Com a quantidade de recursos disponíveis em 2003, não podemos avaliar nada. É injusto avaliar o que foi feito [pelo Ministério] com os instrumentos de política agrícola no cenário fiscal que vivemos no ano passado.

Valor: Há perspectivas de que essa situação melhore?

Dias : Não está parecendo muito que isso vá acontecer. Deve melhorar, mas ainda deve haver restrição nos recursos disponíveis do ponto de vista fiscal. Em compensação, com a taxa de juros real melhorando, a vontade de emprestar aumenta do lado do setor financeiro.

Valor: Em 2003, o agronegócio bateu recordes. Existe espaço para que o avanço continue?

Dias : Deve continuar crescendo, mas o ritmo de expansão deve ser menor. Para manter uma situação bem positiva para o setor agrícola em 2004, é necessário uma recuperação do mercado interno, que os números de massa salarial, recuperação da renda – que estão desapontando um pouco até agora -, tenham uma inflexão. Mas os números ainda são pequenos porque os salários médios reais caíram, o desemprego aumentou e ainda não começou a ser reduzido. Assim, o ritmo de recuperação da massa de salários está comprometido no curto prazo. Aquela expectativa que havia em agosto e setembro de que ocorreria uma virada mais rápida no mercado interno, acho que já foi adiada, talvez para o segundo semestre deste ano.

Valor: Como o senhor vê essa postura mais agressiva do Brasil nas negociações internacionais? Existe a expectativa de avanços, o país deve ser beneficiado?

Dias : Não dá para ser otimista a respeito das negociações internacionais. São negociações difíceis em que assumimos um papel consistente e oportuno. Quem representou na rodada anterior [Uruguai] esse papel foi muito mais a Austrália, que agora está enredada num conflito de estratégia em relação à região do Pacífico, onde passou a depender muito mais dos EUA do que há 10 ou 15 anos atrás. A negociação em si está muito mais complicada porque, de fato, o avanço nas negociações agrícolas tem um papel estratégico agora maior para desentravar o nó das negociações comerciais. Aí há um conflito de agenda grave no cenário mundial.

Valor: Que conflito é esse?

Dias : A Europa, com a perda de sua posição estratégica, com o fim de Guerra Fria, perdeu também esse papel no cenário. Então, no que apostaram? Na estratégia do enlargement, na expansão do sistema. A Europa Oriental é um osso duro de roer, e num certo sentido, eles estão fazendo o impossível dentro das dificuldades que têm. Mas estão enredados porque não ceder nada para esses países das vantagens da política protecionista agrícola da UE é perder o barco completo da união com a Europa Oriental. E assumi-los dentro do sistema como fizeram com Espanha, Grécia, não dá, porque são muito grandes. O projeto estratégico deles já está muito confuso para se comprar, agora, uma bruta de uma confusão de transformação dos interesses agroindustriais europeus. Então eles endurecem sua posição nas negociações.

Valor: Qual a situação em relação os Estados Unidos?

Dias : Curiosamente, dentro dos Estados Unidos, com esse avanço dos republicanos em cima dos democratas, você ocupou Estados em que o interesse agrícola é mais importante. Além disso, o Nafta criou problemas dentro da estrutura agrícola dos EUA, assim o setor ficou sensível dentro da política externa americana e se formou um núcleo de resistência mais forte. Tudo isso tornou o assunto interno agrícola mais sensível. O setor passou a cobrar muito mais em termos de proteção do governo americano. Ficou mais difícil para os EUA atuarem. Então, os dois grandões [EUA e UE] que definem essa jogada de interesses na OMC têm razões fortes para estar de novo mais entrincheirados para negociar benefícios agrícolas. Assim, é natural que a gente fique na posição de contestação. Nessa rodada você avança pouco, sai pela OMC do mesmo jeito que saímos pela Alca, fazendo de conta que fez algo e não fez nada. Nessa combinação atual, você não desata o nó.

Valor: Há outros entraves?

Dias : Outro cenário que está nos prejudicando no curto prazo é a entrada da Rússia na OMC. Com a guerra no Iraque, a coisa piorou, ficou mais delicada ainda a negociação. O que está acontecendo na Rússia é que o [presidente Vladimir] Putin está fazendo uma reestruturação da economia russa. Como a perda no setor agrícola foi o grande calcanhar de Aquiles dos anos 90 em termos populares, ele está negociando duro para obter um espaço de recuperação da agriculturano país. E está levando essas vantagens. Um exemplo são os regimes de cotas para carnes, que negociou de forma extremamente favorável a quem pode dizer sim ou não para a entrada do país na OMC, que são os EUA.

Valor: Falando em carnes, qual deve ser o efeito da descoberta da doença da “vaca louca” nos Estados Unidos para as exportações brasileiras do setor?

Dias : Pode ser mais um motivo para o setor exportador de carne bovina continuar avançando. Mas acho que ainda é muito cedo para avaliar. Parece que o consumidor americano não está muito preocupado com o problema, diferentemente do que aconteceu na Europa e no Japão. Como foi um caso isolado [apenas um animal com a doença foi encontrado até agora], o problema não contaminou os americanos. Além disso, nos Estados Unidos, a população confia no sistema de sanidade, o que não ocorria na Europa. De qualquer forma, o Brasil pode se beneficiar porque haverá menos fornecedores de carne no mercado internacional.