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Cana muda o Centro-sul

O plantio da cana-de-açúcar está mudando o perfil de muitas regiões no Centro-sul do Brasil. Em lugares onde antes imperavam a soja, o milho e o gado, hoje tem cana a perder de vista

De abril a novembro, as máquinas e os braços dos trabalhadores não param. É tempo de colheita da cana no Centro-Sul do Brasil e há cada vez mais braços, cada vez mais máquinas e cada vez mais canaviais conquistando espaço nos estados da região.

Há quatro anos, um tradicional grupo de São Paulo foi a Goiás expandir suas atividades. Uma usina recém construída no município de Quirinópolis está moendo a sua primeira safra: 1,750 milhão de toneladas de cana. E de hoje até 2009, a necessidade de matéria-prima deve triplicar – prova disso é que, enquanto a produção não pára, do outro lado da propriedade estão acontecendo obras de ampliação.

O gerente industrial José Ieda Neto é o responsável por tirar a fábrica do papel e colocá-la em pé. “Ainda não sei quanto vai custar toda a obra, mas o que eu já gastei até agora foram R$ 300 milhões”, revela o gerente. Em três anos, Quirinópolis terá duas usinas funcionando a todo vapor. O investimento trazido por elas até agora já mexeu com toda a cidade.

“A nossa economia sempre foi diretamente ligada ao campo. Então, quando o campo sente queda de receita, o comércio deixa de vender. E esse processo hoje se reverteu: a cana está gerando uma expectativa boa. Podemos classificar a cidade, hoje, como antes da cana e depois da cana”, afirma Luciano Marquez, presidente da Associação Comercial de Quirinópolis.

No hotel, ocupação lotada. Na lojinha do centro, muitos clientes – “Tem muito mais gente na cidade, vem muita gente para cá”, justifica a comerciante Odete Oliveira Borges. O restaurante também está cheio. No supermercado, chega a faltar mão-de-obra. “Na área dos meninos, por exemplo, está difícil. Estão quase todos empregados. Menina ainda é mais fácil de arrumar, um pouco”, conta Dalmo Machado Borges, dono de supermercado na cidade.

Até dois anos atrás, a cana nem fazia parte das estatísticas agrícolas de Quirinópolis; hoje, ela ocupa milhares de hectares. O agrônomo João Martins é o gerente agrícola da primeira usina instalada no município.”A mudança foi muito grande. Se imaginarmos que hoje temos 32 mil hectares de cana aqui e antes era soja, houve nessa região já uma redução de 32 mil hectares de soja. É um volume considerável”, avalia.

Uma estrada de chão, de terra vermelha, bem característica da região, divide a propriedade do seu João Malquias da do seu vizinho. Tem cana dos dois lados, mas nem sempre foi assim. “Toda vida foi soja de lá e soja de cá. Toda vida foi soja aqui na região”, lembra seu João Malaquias.

Em Quirinópolis, os pecuaristas também cederam ao assédio econômico da cana. Os troféus que ainda hoje tomam o escritório do seu José Eduardo Fleury são a memória da época em que seus animais venciam muitos concursos pelo país. Mas nem seu maior campeão, o touro Regente, ele mantém na propriedade hoje em dia: no último ano, a cana entrou em 2.300 hectares da fazenda.

Para a pecuária, ficaram menos de cem hectares. “Eu tive que me desfazer do meu rebanho, de 96% deles, em torno de 2.500 bois”, conta seu José Eduardo, que também é presidente do sindicato rural da cidade. “A cana foi chegando e foi acabando com os pastos, e o rebanho indo embora”.

Mesmo sem seus animais de elite, ele faz questão de mostrar o curral que ainda preserva na propriedade. “Esse curral aqui, eu que fiz. A gente já vê e fica triste, você já começa ver grama nascendo, mato, a porteira estragando. Já não temos aquele zelo, porque já saíram daqui mais de duas mil cabeças da fazenda”, diz José Eduardo.

“Eu acho difícil eu gostar tanto da cana quanto eu gostava de produzir gado porque você nunca quer sair da pecuária”, confessa José Eduardo. “Eu ouvia da família da minha esposa sempre uma frase: ‘segura no rabo do boi que você vai para frente’. Eu estou segurando um pouco a pecuária por uma questão de amor, mas meus filhos e minha filha já falaram que são os bois mais caros do Brasil. É boi comendo capim onde se pode por cana”, brinca.

A multiplicação dos canaviais em toda a região Centro-Sul do Brasil é polêmica. Em São Paulo, o presidente da Federação Estadual dos Trabalhadores na Agricultura, Braz Albertini faz um alerta: “Nós temos uma preocupação muito grande com a expansão da cana da forma como ela acontece porque você exclui todo mundo da zona rural. Você não tem mais um time de futebol, você não tem uma quermesse, você não tem mais uma comunidade na zona rural”, critica.

O representante da ONG WWF-Brasil, o biólogo Carlos Alberto Scaramuzza, também se preocupa. “A gente sabe que uma paisagem agrícola saudável, tanto para os rios como para a natureza, é uma paisagem com diferentes tipos de cultura, com florestas ao longo dos rios e com reservas nas florestas legais”, alerta.

O ex-ministro da agricultura Roberto Rodrigues, hoje coordenador do Núcleo de Agronegócio da FGV, reconhece que existe risco. “O risco é o da monocultura – seja de cana, seja de soja, seja de laranja, seja de café. Qualquer monocultura é um risco, porque uma quebradeira desse produto pode quebrar a região”.

Com a expansão da cana-de-açúcar pelo sudoeste goiano, o município de Rio Verde resolveu frear o avanço da cultura: uma lei municipal de novembro de 2006 limita o plantio da cana em 10% da área agrícola; dos 500 mil hectares voltados para as mais diversas lavouras e criações, a cana pode ocupar 50 mil hectares – e o produtor só planta se tiver uma autorização.

O agricultor Bruno Selaysin conta que nem todos receberam bem a lei de Rio Verde. “Uns receberam bem, outros não tão bem. Eu acho que é normal acontecer desse jeito, como toda lei… tudo que é novidade existe os prós e os contras. Mas gerou polêmica”.

Gerou polêmica porque Rio Verde é um dos maiores produtores de grãos de Goiás e importante criador de frangos e suínos – uma cadeia produtiva que, na opinião do secretário municipal de Agricultura, Paulo Martins, não pode ser ameaçada. “Nós temos aqui indústrias colocadas desde o início dos anos 70. Você tem desde a soja lá no campo até o frango, que é exportado”, argumenta Martins.

“Para você ter uma idéia, nós temos 400 agrônomos atuando no campo hoje. Se nós voltarmos essa área toda para cana, nós não teríamos mais do que dez, 15 agrônomos para acompanhar tudo isso – porque é uma cultura só, monocultura bem mais direcionada nesse caso”.

Já existe uma contestação judicial feita pelo Sindicato das Usinas de Açúcar e Álcool de Goiás para derrubar a lei. “Você não pode chegar para um proprietário rural que paga seus impostos, que tem a sua reserva legal, que tem um uso legal da sua atividade e proibí-lo de usar qualquer tipo de atividade agrícola na sua terra, seja o plantio de melancia, de tomate, de laranja ou de cana-de-açúcar”, argumenta Igor Montenegro, presidente da instituição.

“Você pegar uma atividade agrícola específica e falar para o produtor que ele não pode fazer aquilo na terra dele é tolher o direito de livre uso da sua propriedade privada, o que é proibido pela Constituição Federal”.

Na única usina instalada em Rio Verde, o diretor George Iplinsk já sabe o que vai fazer se precisar de mais cana. “Se precisar de mais, nós vamos recorrer ao município vizinho, Montividiu, que está na divisa e tem uma legislação mais flexível”, afirma.

O prefeito Paulo Roberto Cunha se mantém inflexível e diz que o agricultor de Rio Verde que plantar cana sem autorização pode ser multado em pouco mais de R$ 5 mil por hectare. “Essa lei tem uma razão de ser. Assim como é de competência do município tratar do uso do solo urbano, é de competência dele tratar do uso solo rural”, justifica.

O prefeito discorda do argumento de que então deveria haver limites também para outros tipos de cultura. “Não enquanto a outra atividade não é desempregadora e a única cultura. Você tem a soja como uma cultura que permite a cana chegar até aqui”, explica. “Nós chamamos a cana para conviver conosco. Nós não proibimos a cana. Não somos contra a industrialização da cana, mas queremos que ela seja limitada”.