O físico José Walter Bautista Vidal tinha 40 anos e cabelos pretos quando – no início de 1975 – entrou em um auditório da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) lotado de empresários do setor automobilístico para defender que o álcool seria o combustível do futuro e colocaria o Brasil no meio de uma revolução energética mundial. Ouviu risadas que eram, sem dúvida, de escárnio.
Tinha 69 anos e cabelos brancos quando, em 2004, foi chamado ao palco da Conferência Mundial de Energias Renováveis em Bonn, na Alemanha. Tomou um susto ao ser aplaudido de pé por três mil representantes de 154 países.
Nova meca de multinacionais, item obrigatório na agenda de governantes de todas as pontas do mundo, objeto de visita recente do presidente americano George W. Bush ao Brasil, área de atuação de investidores como o bilionário George Soros e negócio que só no ano passado movimentou US$ 6 bilhões, o etanol brasileiro é a mais viável promessa de alternativa energética global e grande chance de salto econômico para o País.
Mas, no começo da linha do tempo desse triunfo em potencial, está um punhado de cientistas brasileiros que se dedicaram a melhorar a produção do álcool, compraram brigas em sua defesa, foram chamados de loucos e, por vezes, pararam para pensar se de fato estavam no caminho certo.
A grande bossa do álcool brasileiro – e, até o momento, sua grande vantagem competitiva – é que ele é mais barato porque sai de máquinas movidas a energia elétrica produzida com a queima do bagaço da cana. Maiores produtores mundiais, os Estados Unidos, por exemplo, fazem o combustível a partir do milho e por meio de energia tirada do carvão ou gás natural – um processo duas vezes mais caro do que o brasileiro.
A tecnologia de gerar energia elétrica do bagaço é quase tão antiga quanto a cultura da cana, mas os pesquisadores brasileiros melhoraram esse processo até deixar as usinas auto-suficientes. O esforço só foi possível por causa do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool.
Iniciado em 1975 no rastro do choque do petróleo e morto por inanição em meados de 2000, o programa foi associado por décadas a uma invenção do Regime Militar para subsidiar usineiros Brasil afora, alguns deles atavicamente comprometidos com o atraso. Não se pode dizer que é um argumento falso. Mas, olhando para trás, vê-se que vieram do programa os avanços que hoje colocam o País na vanguarda do setor.
Baiano, capaz de se inflamar ao falar de novas formas de energia limpa e renovável, secretário de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e do Comércio nos governos de Ernesto Geisel e José Sarney, Bautista Vidal costuma ser identificado pelo aposto “pai do Proálcool” – que define como “o único programa de substituição em larga escala dos derivados de petróleo”.
O físico implantou o Proálcool a pedido do ex-ministro Severo Gomes, fundou 30 instituições de pesquisa, e foi acusado de estar a serviço de uma farra sucroalcooleira promovida pela ditadura. “Era uma maneira de criar alternativas para um combustível que leva 400 milhões de anos para se renovar!” diz. Hoje, espia a euforia em torno do etanol e diz que fica “muuuuito recompensado”.
‘desânimo danado’ – Os maiores avanços nas tecnologias de produção do etanol se deram dentro de uma instituição privada, com benefício indireto do Proálcool. Reunidos na Copersucar, maior conglomerado de usinas do País, grandes usineiros beneficiados pelo programa investiram na criação do Centro de Tecnologia da Cana (CTC), que chegou a contar com US$ 20 milhões anuais para pesquisas.
O engenheiro Manoel Sobral Júnior tinha 35 anos, deixou um empregão de professor titular da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e aceitou o convite da Copersucar para montar o CTC. Juntou especialistas brasileiros e trouxe outros dos Estados Unidos, Havaí e África do Sul. Fez andanças pelos canaviais do Brasil. Montou estações de pesquisa em sete cidades, com 1.800 pessoas envolvidas.
“Ninguém trabalhava com tecnologias de cana nas universidades. Foi um esforço novo, de onde vieram os avanços que temos agora”, conta ele, hoje com 78 anos, aposentado, ainda dedicado a prestar consultorias na área, mas interessado em ouvir música clássica, de preferência sem invencionices sobre as partituras originais.
Na coordenação da divisão de processos químicos, trabalhava o engenheiro Carlos Eduardo Vaz Rossel, maior especialista do País em hidrólise ácida – processo pelo qual o bagaço da cana é transformado em energia elétrica. “Na tentativa e erro, a gente ia desenvolvendo melhores formas de produção”, conta. Quando o Proálcool acabou e o dinheiro para a pesquisa minguou, Vaz Rossel chegou a pensar se tinha dedicado décadas de sua carreira a uma área sem futuro. “A gente faz uma autocrítica. Mas passa logo”, brinca ele, hoje com 64 anos, professor da Universidade de Campinas.
“Quando as pessoas pararam de pensar no álcool como alternativa viável, cogitei se estava trabalhando num setor condenado. Mas sabia que era questão de tempo”, diz o engenheiro agrícola Oscar Braunbeck, responsável no CTC pela melhoria da produção do etanol a partir do campo, hoje com 64 anos, professor da Unicamp.
Especialista, em sua própria definição, em “entrar no barco quando ele está afundando”, Manoel Regis Lima Verde Leal entrou no CTC em meados dos anos 80, justo quando os usineiros passaram a produzir mais açúcar do que álcool por conta das demandas do mercado.
De 1986 a 2004, além de supervisionar a área de processamento da cana, tinha a tarefa de defender o trabalho do CTC em congressos, seminários e reuniões de corpo de trabalho – muitas vezes diante de fabricantes de veículos, produtores de motores ou distribuidores de combustíveis. “Eu ficava ali defendendo o aumento do teor de álcool na gasolina. Ás vezes dava um desânimo danado. Hoje olho essa animação toda e não dá para evitar: eu me sinto parte disso”, diz ele, 65 anos, aposentando e coordenando pesquisas no Ceará.
Trancos e barrancos – A linha evolutiva que jogou as cerca de 400 usinas brasileiras que produzem álcool no meio das mudanças energéticas se deu aos trancos e barrancos. A tecnologia que hoje aparece como solução para as chagas mundiais da escassez de petróleo e aquecimento global foi desenvolvida pelo método empírico . “Nossos pesquisadores melhoraram a produção por tentativa e erro. Não há produção científica consolidada e a partir de agora isso vai ser cada vez mais importante”, diz o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 75 anos, coordenador do Projeto Etanol. Há décadas ele compra brigas pelo combustível.
Nos anos 70, Cerqueira Leite acompanhou de perto o nascimento do Proálcool. Nos anos 80, escreveu artigos sobre o efeito estufa quando a academia execrava a idéia de que a queima de combustíveis fósseis pudesse ter efeitos sobre clima. “Houve um período de campanha contra o etanol e o dinheiro gasto no Proálcool. Ser do contra dava confusão. Mas a gente gosta de briga.”