O governo anunciou, no início de abril, mais um pacote bilionário de ajuda ao setor agropecuário, repetindo um roteiro que tem sido recorrente. Nos últimos 25 anos, o campo sofreu diversas crises financeiras, sempre enfrentadas com rolagem de dívidas. No caso atual, o socorro é de quase 17 bilhões de reais, formado basicamente por novas dilatações nos prazos para o pagamento de débitos com o governo. A justificativa para o pacote são os problemas concretos vividos pelos produtores no período recente: câmbio desfavorável, queda de preços internacionais e seca em regiões produtoras, especialmente no Sul.
Infortúnios à parte, a assistência ao agronegócio mostra que, apesar do vigor exibido nos últimos anos — quando se consolidou como terceiro do mundo em exportação –, o setor ainda convive com uma enorme vulnerabilidade: a gestão financeira rudimentar de boa parte dos produtores, incapaz de amenizar os períodos de instabilidade inerentes à atividade.
A fragilidade mostra-se particularmente evidente no setor de grãos, que esbanjou pujança do final da década de 90 até 2004. Durante os anos de bonança, os produtores usufruíram de preços elevados, real desvalorizado e forte demanda externa, impulsionada pela China. A produção anual de grãos evoluiu de 77 milhões de toneladas para mais de 120 milhões. No ano passado, porém, a situação começou a se deteriorar. O custo para produzir soja, que em 2004 era de 50 dólares por tonelada em Mato Grosso, dobrou. “Enquanto isso, o preço internacional caiu pela metade”, afirma André Pessoa, diretor da consultoria Agroconsult. Em 2005, a renda do setor caiu 10%, perda equivalente a 17 bilhões de reais, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A crise levou o setor, desde meados do ano passado, a protestar com tratoraços e outras formas de pressão sobre o governo. O socorro financeiro afinal liberado contemplou metade do que os agricultores pediam. “O ato do governo foi positivo, mas apenas aliviou parte da tensão”, afirma Antônio Ernesto de Salvo, presidente da CNA, demonstrando interesse em novo aporte de recursos.
A extensão dos estragos seria menor, defendem especialistas, com maior difusão de instrumentos financeiros modernos já disponíveis no mercado. Um deles é o seguro rural. “Um seguro bem-feito mitigaria o efeito de geadas e secas, que quebram a produção e deixam o agricultor sem poder pagar o que deve”, diz Félix Schouchana, diretor de mercados agrícolas da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F). No Brasil, esse tipo de mecanismo é ainda incipiente e enfrenta dificuldade para crescer devido aos altos custos para o produtor. “Para reduzir esse custo, em quase todos os países o governo subvenciona parte do seguro e estimula os agricultores a contratá-lo”, diz José Vicente Ferraz, diretor executivo da consultoria FNP. “A razão é simples: sai mais barato ajudar no seguro do que ter de perdoar as dívidas.” Apenas no final do ano passado o governo definiu uma verba para começar a participar do seguro rural. Neste ano, esse mercado deve alcançar 20 milhões de dólares no Brasil, valor irrisório frente ao de outros países. “Na Argentina o mercado é de 100 milhões de dólares e nos Estados Unidos de 1 bilhão”, diz José Bailone Júnior, vice-presidente da Mapfre, uma das seis seguradoras que operam no setor.
Outra saída que a agricultura brasileira ainda precisa desenvolver é a proteção dos preços e do risco cambial por meio de negócios na bolsa. Nos Estados Unidos, a utilização desses instrumentos já tem mais de 120 anos e faz parte da cultura — toda a produção é protegida. “Aqui, temos de encarar excesso de tributação sobre as operações e falta de linhas de crédito específicas”, diz Schouchana. O resultado é que, com exceção do café, que tem tradição histórica de negociação internacional, a produção brasileira é quase inteiramente exposta aos contratempos. Do valor movimentado no mercado de boi, apenas 15% contam com operações na BM&F. No caso da soja e do açúcar, menos de 5% da produção está protegida.
Dentro do próprio governo, a forma de relacionamento com o setor rural é motivo de discussões. Enquanto o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, saiu em defesa do socorro, o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, opinou que o ideal seria implementar mudanças estruturais que permitissem aos próprios produtores resolver as dificuldades. “A verdade é que o agronegócio vem financiando seu crescimento de maneira muito arriscada”, diz o economista Guilherme da Silva Dias, professor da Universidade de São Paulo. Os produtores, afirma, têm usado de forma intensiva o capital de bancos e de terceiros, como os fornecedores de máquinas e de fertilizantes, com prazos curtos de pagamento. Para pagar os empréstimos, apostam em rendas futuras nem sempre certas. “Até uma criança sabe que o agronegócio é cíclico, alternando anos médios com bons e ruins”, afirma Ferraz, da FNP. “Não é possível admitir que os produtores tomem decisões com base apenas nos anos de pico.” Também pesa a certeza disseminada entre muitos produtores de que toda situação de dificuldade será tratada com carinho por parte dos governantes de plantão. “Um punhado de empresários, que representam apenas 3% dos produtores brasileiros, concentra 45% do financiamento bancário e pratica uma gestão temerária. Eles se endividam confiando que Deus — isto é, o governo — vai dar um jeito”, afirma Dias.