Os Estados Unidos, nos últimos dois anos, decidiram modificar sua estratégia de criar um bloco comercial de 34 países nas Américas (Alca) e concentraram seus esforços numa série de acordos bilaterais com países centro-americanos e andinos, menores e mais flexíveis às demandas norteamericanas.
Coerente com essa nova política, o governo norte-americano pediu o adiamento sine die
das negociações entre os copresidentes da Alca, Brasil e Estados Unidos, e o ministro Celso Amorim declarou que as negociações para a formação da Alca não deverão ser concluídas antes de 2009, horizonte de tempo que surgiu na última conversa mantida com o novo USTR, Robert Portman.
Não deixa de surpreender a atitude de Washington em relação ao Hemisfério, já que a retórica do livre comércio, como fator importante para o fortalecimento da democracia e do crescimento econômico na região, sempre foi parte integrante da política externa norteamericana e a Alca é o principal instrumento dessa política.
A primeira e talvez mais importante explicação para a mudança de atitude dos Estados Unidos é que a política comercial norte-americana passa por um momento de grande dificuldade, em razão da combinação de problemas internos e de falta de clareza negociadora externa.
Do ponto de vista doméstico, no segundo governo Bush aumentou o poder de grupos de pressão conservadores e a influência dos setores agrícola e industrial, mais necessitados de proteção e de medidas defensivas e cujos porta-vozes são os próprios secretários de Agricultura e do Comércio. O setor privado tem reclamado da pletora de acordos de livre comércio (12 completados e 12 em negociação), da duvidosa prioridade na escolha dos parceiros, em geral pouco significantes em termos de geração de comércio, e da crescente complexidade para compatibilizar as regras de origem e do controle aduaneiro pelas diferenças existentes entre eles.
No Congresso, os representantes dos dois partidos, Republicano e Democrata, com poucas exceções, se manifestam abertamente contra acordos de livre comércio negociados pelo governo e defendem sem nenhuma cerimônia restrições para favorecer setores ineficientes e sem competitividade externa. Como resultado, o acordo comercial negociado com os países centroamericanos (Cafta) encontra forte resistência para ser ratificado. Aprovado pelo Senado por reduzida margem, o Cafta, apesar de enfraquecido pelas concessões aos grupos protecionistas do açúcar e do têxtil, ainda não tem os votos necessários para ser aprovado na Câmara, em votação prevista para até o fim de julho. Por outro lado, a agenda legislativa na área comercial, que inclui, entre outros itens, a prorrogação da autorização do Legislativo para negociar acordos comerciais – Trade Promotion Authority (TPA) – e a ratificação do acordo que criou a Organização Mundial do Comércio (OMC), vai exigir um grande esforço do Executivo para ser aprovada.
Do ângulo externo, as negociações multilaterais da Rodada de Doha progridem lentamente e estão constantemente ameaçadas de descarrilamento por questões técnicas de complexidade crescente. A mudança da atitude dos Estados Unidos em relação aos acordos de livre comércio ensejou sua rápida proliferação (já somam mais de 300), inclusive na Ásia, onde a China e o Japão também estão aderindo a esse tipo de acordo. No caso da Alca, a oposição do Brasil à negociação de um acordo hemisférico nos moldes do pretendido pelos Estados Unidos e as atuais dificuldades políticas nos países andinos criaram uma dificuldade inesperada para Washington.
Resta saber se essa nova política dos Estados Unidos prevalecerá após a aprovação pelo Congresso do Cafta e da TPA. A derrota (possível, mas improvável) do Cafta na Câmara sepultará por muito tempo a negociação da Alca. De qualquer forma, não parece que os Estados Unidos venham a abandonar a estratégia de acordos de livre comércio bilaterais, o primeiro dos quais com o Chile e, agora, com os países da América Central.
Caso a previsão de adiamento feita pelo ministro Amorim se concretize, para o Brasil deverá ser ainda maior a prioridade atribuída às negociações multilaterais de Doha, sobretudo para a obtenção de ganhos em acesso a mercado para produtos agrícolas, redução dos subsídios, internos e para a exportação, e em algumas regras, como antidumping.
Em relação ao Hemisfério, como resposta à nova atitude do governo de Washington, o Brasil insiste em negociar um acordo de abertura de mercados no formato 4+1, deixando as regras para uma segunda etapa, como está sendo feito nos entendimentos com a União Européia. Embora correta, essa proposta parece irrealista, pela previsível recusa dos Estados Unidos. Por outro lado, as recentes declarações de que o Itamaraty voltou a dar prioridade à Alca se chocam com a previsão de adiamento para 2009 e com a baixa prioridade que passou a ter para Washington.
Uma vez concretizado o acordo de livre comércio dos Estados Unidos com os países andinos, todos os países da América do Sul e da América Central, menos a Venezuela e os do Mercosul, terão negociado a ampliação de seu acesso ao mercado norte-americano.
Esses acordos, como ocorreu nos casos do México e do Chile, deverão erodir as margens de preferência, isto é, as tarifas negociadas pelo Mercosul com os países da região no âmbito da Aladi.
O governo brasileiro, juntamente com os demais parceiros do Mercosul, deve propor, o mais rapidamente possível, a abertura de negociações com os países sul-americanos que negociaram acordos de livre comércio com os Estados Unidos, para, pelo menos, buscar a equiparação das tarifas de importação, a fim de recuperar a competitividade dos produtos brasileiros.
Essa seria uma resposta necessária à mudança da atitude norte-americana em relação ao projeto de integração comercial hemisférica, hoje com baixa prioridade na agenda comercial negociadora dos Estados Unidos.
Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos EUA e na Grã-Bretanha