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A mais brasileira das bebidas

De líquido marginal, a cachaça foi elevada ao posto de destilado nobre. Até a década de 80, a purinha se situava entre a bebida dos humildes ou no máximo dos excêntricos. A “tira-juízo”, “xarope-dos-bebos” ou “esquenta-dentro” quando chamava atenção era por seu exotismo e por seu lado folclórico. Nos anos 90, a “brasileirinha” tomou ares de atitude vanguardista, de bebida verde-e-amarela, para adentrar o século XXI em seu merecido pódio, o de mais brasileira das bebidas, símbolo nacional, com qualidade, charme e sofisticação.

A “preciosa” freqüenta hoje a mesa de todas as classes, com espaço garantido nas delicatessens, nas gôndolas de supermercados, nas cartas dos melhores restaurantes, em hotéis de luxo, na mídia generalizada e especializada. A “danada” já motiva festivais, confrarias, associações de produtores e de apreciadores e até conquistou a atenção de órgãos governamentais. Terceiro destilado mais consumido do mundo, atrás apenas da vodca e do soju (bebida à base de sorgo muito consumida na Ásia), a “dengosa” é, antes de tudo, a segunda bebida alcoólica na preferência dos brasileiros. Perde a preferência apenas para a cerveja.

A origem da palavra “cachaça” é bastante controversa. Os primeiros registros históricos do termo “caxasa” como aguardente de cana, datam de 1635, nas atas da Câmara do Município de Salvador. Pode ter sido uma derivação do vocábulo “cacho”, proveniente do latim “capùlus” (punhado) ou “caccùlus” (caldeirão). Outra teoria se origina na Portugal quinhentista, onde “cachaça” significava “vinho de borras”, denominação que no Brasil, teria se estendido à aguardente feita de borras de melaço. Existem ainda outras hipóteses, como o feminino de “cachaço” (parte gorda do pescoço do porco), ou ainda o verbo latino “coquère” (cozer, cozinhar).

O crédito pela invenção da pinga é dos escravos africanos. Eram eles que cozinhavam o caldo de cana para obter o melaço, que teria acidentalmente fermentado durante esse processo e destilado ao ser fervido. A origem da “marvada” se situa entre os anos de 1532 e 1548, na capitania de São Vicente, primeira a ter plantações de cana-de-açúcar. As mudas da “cana crioula” teriam vindo da Ilha da Madeira por iniciativa de Martim Afonso de Souza, donatário dessa faixa de terra.

Foram também os portugueses que importaram a devoção a São Benedito, santo associado à cachaça, mesmo antes de sua canonização em 1807. Conhecido como “o santo mouro”, ele nasceu em 1526 na Sicília (Itália), filho de um escravo africano. Seu culto tornou-se muito popular no Brasil, como padroeiro dos negros e da caninha.

Cada brasileiro consome anualmente 7 litros de aguardentes de cana e de cachaças. É bom avisar, o INMETRO faz distinção entre os dois produtos. A diferença está na origem da matéria-prima. Enquanto a aguardente de cana é “feita diretamente a partir do destilado da cana”, a cachaça é “feita a partir do melaço resultante da produção de açúcar de cana”.

A produção brasileira ronda os 1,3 bilhão de litros anuais e já movimenta US$ 500 milhões, gerando 450 mil empregos diretos. São cerca de 30 mil fabricantes, localizados principalmente nos estados de São Paulo (o maior produtor, com 70% do mercado), Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro, Goiás e Minas Gerais. São mais de cinco mil marcas lideradas pela “51”, da Companhia Müller de Bebidas. A empresa paulista, com sede em Pirassununga, domina mais de um terço do mercado total. Produz 250 milhões de litros/ano e tem um faturamento de R$ 500 milhões.

Outros players importantes são a pernambucana Pitú, maior exportadora do País e localizada em Recife; a Velho Barreiro, fabricada em Rio Claro, no interior de São Paulo; e a Ypioca, do Ceará. Esta última é a líder quando se fala em fabricação com matéria-prima própria e envelhecimento em barril. Segundo o Guiness Book, a Ypioca detém o recorde de maior barril de madeira do mundo, com capacidade para 374 mil litros.

As exportações de nossa “água-de-briga” ainda são uma gota se comparadas a outros destilados como o rum cubano, a vodca russa ou uísque escocês. O México, por exemplo, exporta cerca de US$ 250 milhões de tequila ao ano, enquanto as remessas de pinga para fora do País não atingem 10% desse montante. Mas os números são promissores. Desde 1995, as exportações crescem cerca de 10% ao ano.

A caninha ganhou maior força para ingressar no mercado internacional a partir do apoio dos Ministérios das Relações Exteriores, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da Agricultura. Em 1997 foi criado o Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana, Cachaça ou Caninha (PBDAC), coordenado pela Associação Brasileira da Indústria de Bebidas (ABRABE). A tradicional bebida brasileira recebe ainda o apoio do Programa Especial de Exportações (PEE) e da Agência de Promoção de Exportações (APEX). Além disso, pelos decretos 3062/01 e 3072/02, assinados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, o nome “cachaça” é reconhecido juridicamente como o produto exclusivo do destilado feito a partir do suco da cana-de-açúcar dentro do território brasileiro. A lei visa, além de preservar o nome da bebida, distingui-la do rum, destilado que tem a cana-de-açúcar como matéria-prima.

Em 2002, 14,8 milhões de litros foram exportados, rendendo US$ 14,5 milhões em divisas. Em 2003, os números se aproximam dos 20 milhões de litros e US$ 19 milhões. A meta do PBDAC é que, até 2010, se atinja os 50 milhões de litros.

O Laboratório de Desenvolvimento de Química de Aguardente do campus da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos tem dado apoio à indústria da caninha. Pesquisadores da universidade trabalham atualmente num projeto que visa à tipificação da pinga produzida regionalmente. O objetivo é elaborar um método de certificação com base nas características de cada região, visando lançar no mercado uma cachaça C.Q.P.R.D. (Cachaça de Qualidade Produzida em Região Determinada).

Algumas regiões produtoras já são ostensivamente reconhecidas pelo mercado interno como símbolos de qualidade. Uma das mais tradicionais é Paraty, balneário carioca sinônimo de caninha da boa. A Maré Alta é o nome mais importante da região e tem um estofo de aristocracia. Esse alambique pertence ao príncipe dom João de Orleans e Bragança, o que confere à bebida um merecido ar nobreza.

A região de maior prestígio, porém, é outra. Fica em Salinas, no vale do Jequitinhonha, localizada 680 km ao norte de Belo Horizonte. Considerada a capital nacional da cachaça artesanal (vide box sobre cachaça artesanal), concentra 23 fabricantes legais, que têm cerca de 35 marcas, sem contar as mais de cem marcas não registradas.

É de lá que vem o maior mito entre as caninhas, a Anísio Santiago. Falecido há poucos anos, com idade avançada, Santiago produzia, desde os anos 1940, uma pinga que levava o nome de sua fazenda, “Havana”. São muitas as histórias a respeito dessa cachaça, a mais cara do País (cerca de R$ 300 a garrafa, em São Paulo), e de seu fundador. Processado nos anos 90 pelo Havana Club Holding S/A, Santiago perdeu o direito à sua marca. Após o litígio, os rótulos passaram a ostentar o nome do criador, “Anísio Santiago”.

Nos últimos três anos, o mercado está aquecido pelo lançamento de novas marcas. Todas se direcionam ao recentemente perfil do consumidor, mais sofisticado e exigente. É o caso da mineira GRM (Gosto Requintado Mundial) que teve seu lançamento com toda a pompa, em Paris em 2002. Essa aguardente de luxo, produzida em Araguari (MG), é envelhecida em barris de carvalho, umburana e jequitibá rosa e é apresentada numa embalagem de gala, que faz bonito em qualquer parte do mundo. Outro lançamento nessa linha é a Leão de Ouro, que busca um diferencial em seu blend, uma mistura de pingas jovens (60%) e envelhecidas, todas de Minas. De olho no mercado externo, a Associação das Empresas Mineiras Exportadoras de Cachaça (Comex), grupo de 14 produtores “de alambique”, que decidiu há dois anos enfrentar em bloco o mercado interno e externo, também se prepara para lançar seu blend, que se chamará “Uai”.

A tendência chegou firme às lojas, bares e restaurantes. Desde que a pioneira “Academia da Cachaça” foi fundada no Rio de Janeiro em 1985, outros a seguiram. A loja Garapa Doida, no bairro do Leblon, é um verdadeiro museu da cachaça, com livros, vídeos, acessórios e, claro, centenas de rótulos diferentes. No centro da capital fluminense, o restaurante Giuseppe Grill, além de uma carta de cachaças, oferece atendimento especializado. Marion Brasil, 26 anos, sugere o petisco ideal para harmonizar com a “engasga-gato” predileta. A profissão de garçonete “expert em cachaça” se prolifera. Fernanda Nepomuceno, 41 anos, é responsável por indicar a “limpa-goela” mais adequada a cada freqüentador do mais novo bar temático do balneário, o Mangue Seco, na Rua do Lavradio.

Não sem uma ponta de jequice, a imprensa carioca está chamando essas profissionais de “cachacier” ou “chachacière”, numa alusão ao profissional do adega, o “sommelier”. Em vez de pegar carona nas tradições e no requinte do vinho, poderia se criar um nome brasileiríssimo. Quem prova cachaça, quer beber um pouco de nosso País e comprovar que estilo e sofisticação podem estar associados a um produto genuinamente brasileiro. Façam as suas sugestões.