Decidida meio de surpresa, a visita de Bush a São Paulo começou criando mal-estar… em Berlim. De fato, a imprensa alemã lamentou a “falta de sorte” que fizera o presidente Horst Köhler desembarcar no Brasil na véspera da chegada do presidente Bush, centro de todas as atenções. Porém, a despeito de seu caráter inesperado, a presença de Bush no Brasil não obstou a visita oficial de Lula aos EUA e sua presença em Camp David, no dia 31 de março. Desde logo, a proximidade inusitada dos dois encontros imprime um destaque particular ao atual estágio das relações entre os dois países.
Tornou-se banal afirmar que a virada da política externa americana após o ataque às Torres Gêmeas levara os EUA a se desinteressar da América Latina. Supondo que tal interesse tivesse realmente existido, convém ainda considerar que a indiferença à região não se restringe à administração republicana. Na campanha presidencial de 2004, no único debate entre Bush e Kerry consagrado à política externa, nenhum dos candidatos mencionou uma só vez a América Latina. Mais recentemente, no início de fevereiro, quando o porta-voz da Casa Branca anunciou, no meio de outros assuntos, a visita presidencial à América Latina, as poucas perguntas dos jornalistas sobre o tema concentraram-se na imigração ilegal vinda do México. Tal tem sido a pauta latino-americana que polariza a atenção do Congresso e dos diferentes presidentes americanos desde o final da Guerra Fria: a imigração ilegal, o narcotráfico e a ampliação do livre-comércio.
Em São Paulo, as discussões sobre o último tema deram lugar a um mal-entendido e a conversas ainda em curso. O mal-entendido ficou por conta da frase do presidente Lula sobre “a busca do ponto G” nas negociações comerciais, à qual um jornalista do New York Times atribuiu “o prêmio do comentário mais impolido” (off-color, que também pode ser traduzido por “grosseiro”), da viagem de Bush à América Latina. As conversas ainda em curso entre os dois países incluem as matérias mais gerais de estratégia comercial, as relações com o continente africano e o etanol.
As negociações na OMC e a Rodada Doha geram outro tipo de problemas. Potência do agronegócio e um dos líderes do G-20, o Brasil – conforme a estratégia adotada nas negociações internacionais – tem sido criticado ou elogiado pelos EUA e pela União Européia (UE). Atualmente, parece existir uma convergência entre as posições americana e brasileira. Assim, o recente ataque do presidente Jacques Chirac contra Peter Mandelson, o negociador da UE na OMC, afirmando que ele não defendia os agricultores europeus, e do ministro da Agricultura francês, classificando o agronegócio brasileiro de “predador”, deve explicar-se pela perspectiva de uma aliança entre o Brasil e os EUA contra o protecionismo agrícola europeu e, sobretudo, francês, na Rodada Doha. Porém, pode ocorrer uma mudança de alianças e será a vez de os EUA criticarem os negociadores brasileiros.
Mencionadas no comunicado de Bush e de Lula, as possibilidades de cooperação americano-brasileira na África derivam da notória preocupação de Washington a respeito do continente. Fornecendo mais de 10% do petróleo consumido nos EUA, essa parte do mundo tem sido o teatro de uma instabilidade crônica, acentuada pela ofensiva islamista na África Oriental. Ademais, a China desenvolve um intercâmbio cada vez mais intenso com o Continente Negro. Por sua parte, terra da maior população afrodescendente vivendo fora da África e presente na região com 30 embaixadas, o Brasil apresenta-se como o único país latino-americano apto a desenvolver uma diplomacia à dimensão do continente africano. Tais assuntos envolvem discussões complexas, que serão eventualmente programadas pelos dois presidentes na reunião do final do mês, em Camp David.
De imediato, a viagem do presidente americano encontrou na sua etapa final, na fronteira do Texas que Bush bem conhece, um desafio e um limite: a imigração latino-americana. Prestigiado por Washington por ter vencido nas últimas eleições López Obrador, acusado de ser um “novo Chávez”, o presidente mexicano Felipe Calderón procura, no entanto, desmarcar-se do pró-americanismo ativo de seu predecessor, Vicente Fox. Diante de Bush, ele acusou os EUA de não agirem com o devido rigor para estancar a demanda americana por entorpecentes, que alimenta as redes de narcotráfico mexicanas, e lamentou a falta de investimentos americanos, razão da pobreza e da emigração dos mexicanos.
Os comentários dos jornais das duas margens do Rio Grande situam os limites da viagem do presidente americano. Como pode Bush definir políticas de médio prazo e mudanças nas relações com o México e a América Latina quando enfrenta a oposição do Congresso e de boa parte da opinião americana?
Paradoxalmente, parte do relevo que a mídia americana e internacional deu à viagem do presidente Bush deveu-se ao repto quase caricatural lançado pelo presidente Chávez no seu percurso por outros cinco países latino-americanos (Argentina, Bolívia, Nicarágua, Jamaica e Haiti). Fontes bem informadas pensam que a decisão de Evo Morales de dissociar-se do comício anti-Bush organizado por Chávez em Buenos Aires deve-se, em parte, à influência da diplomacia brasileira em La Paz. Não obstante, a viagem simultânea de Bush ao Brasil e ao Uruguai e de Chávez à Argentina acirra as tensões no Mercosul.
Lula deverá lidar com tais problemas antes e depois, muito depois, da viagem à Camp David. Resta mencionar a questão dos biocombustíveis. Desde já está claro que o acordo sobre a transformação do etanol em commodity e sua produção industrial em países das Antilhas ou da África tem para o Brasil uma importante contrapartida.
Para além de investimentos na pesquisa sobre a produção de etanol, será preciso pôr cobro à exploração de boa parte dos cortadores de cana brasileiros. Em São Paulo, 400 mil homens e mulheres trabalham no corte de cana. No Brasil, o número chega a 1 milhão. Nos anos 1980, um trabalhador cortava 4 toneladas e ganhava o equivalente a R$ 9,09 por dia. Hoje, corta em média 15 toneladas e ganha cerca de R$ 6,88 por dia.
Para o jornal The Guardian, tal situação transforma esses trabalhadores em “escravos”.
* Luiz Felipe de Alencastro é professor titular de História do Brasil da Universidade de Paris Sorbonne, autor de O Trato dos Viventes (Companhia das Letras, 2000) e editor do blog
SEGUNDA, 12 DE MARÇO
PINGA-PINGA DIPLOMÁTICO
Após rápida passagem pela Guatemala, o presidente americano George W. Bush seguiu para o México, sua última escala na visita à América Latina. Lá, discutiu imigração ilegal e tráfico de drogas, os temas mais polêmicos na relação entre os dois países.