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A hora da verdade – reinventar a Petrobras

Dizer que a situação da Petrobras hoje é dramática parece uma tautologia. Mas o que muita gente esquece é que isso já era verdade há muito tempo. Os problemas, diga-se de passagem, têm início há mais de dez anos, mas a sua insustentabilidade ficou evidente já aos primeiros sinais de queda dos preços do petróleo.

Por decisões do acionista controlador, a companhia foi vilipendiada na última década em pelo menos quatro frentes. Na primeira, adotou uma pseudopolítica de preços suicida, que logrou ao mesmo tempo fragilizar a companhia, inviabilizar o modelo competitivo preceituado pela Lei do Petróleo e pela Lei do Cade e paralisar a indústria do etanol.

A segunda frente foi a adoção de um plano de investimentos megalomaníaco, onde os números eram recorrentemente torturados para justificar o injustificável. Ao mesmo tempo, as estruturas de controle eram propositalmente desprovidas de eficácia, o que se comprova pela incapacidade do conselho de administração de ter qualquer informação sobre a rentabilidade dos bilionários investimentos que aprovava. Cenários de estresse ou inexistiam ou eram insuficientes.

A terceira frente foi uma estrutura ideológica de protecionismo, que, além do tão falado ‘conteúdo nacional’, obrigou a companhia financiar com seu próprio balanço, ou através de garantias, estaleiros e fornecedores – muitos dos quais claramente desprovidos de condições adequadas. Criou-se um “mercado” onde o único comprador precisava comprar muito, e era limitado a um universo restrito de fornecedores. Os resultados, como se viu, foram custos explosivos e muita corrupção.

A quarta frente foi o aparelhamento de parcelas da companhia, inchando despesas e alocando recursos para atividades que nada tinham com a sua missão prevista em lei e estatuto. O desprestígio imposto ao excelente quadro técnico da Petrobras levou a uma situação de seleção adversa, com muitos bons profissionais saindo em planos de demissão voluntária.

Perceba-se que a corrupção, ainda que perpasse os fatores acima, não está listada como fonte principal das agruras. Ela é, ao mesmo tempo, causa e consequência. Sem dúvida trouxe prejuízos gigantescos, mas não é a causa principal.

Paradoxalmente, há que se comemorar o desabamento das cotações do petróleo. O balanço e o plano de negócios da Petrobras já eram inviáveis com o petróleo a US$ 70, mas esses fatos poderiam ser disfarçados por muito tempo – principalmente considerando-se a complacência do mercado, que financiou tudo isso por tanto tempo. O petróleo a US$ 30 atua como um “wake up call”. Como diz Warren Buffett, é na maré baixa que vemos quem está nadando nu.

Constatada a gravidade dos fatos, discute-se o que fazer. Vemos a Petrobras trazer a mercado reiteradas revisões nos seus planos de investimentos e de alienação de ativos. A administração atual tenta correr atrás da curva por conta de uma situação que não criou, e que não parece ter as condições para reverter.

O tamanho do buraco no qual a Petrobras se encontra não poderá nunca ser resolvido através de ações incrementais ou marginais. Contudo, é isso o que tenta fazer a companhia com esses ajustes. Em que pesem os novos planos anunciados, não se consegue responder à principal pergunta: afinal, para onde vai a Petrobras?

Ninguém sabe. E não sabe porque a empresa não tem um plano estratégico que reflita a atual realidade. O que vemos são ajustes no que foi definido por gestões anteriores. Pior: como um dos primeiros atos da atual gestão, propôs-se uma reestruturação administrativa e da governança, com a contratação de grandes consultorias internacionais. Trata-se de uma inversão de fatores, que altera em muito o produto. Primeiro, é importante que se tenha uma visão do que a empresa será dentro de 10 ou 20 anos. Em seguida, ajusta-se a estrutura para esse plano estratégico.

Para piorar, uma pessoa com muitos anos de casa nos descreveu o impacto da menção do termo “reestruturação” numa empresa como a Petrobras. Imediatamente, o corpo técnico passa a se preocupar com seus próprios papéis. A política passa a ter um peso enorme nas preocupações dos funcionários, diminuindo sua capacidade de focar nos gigantescos desafios efetivos que enfrenta a companhia.

Temos, portanto, uma companhia sem direção, com um corpo técnico machucado, ameaçado pela reestruturação e liderado por uma diretoria indicada em grande parte pela administração anterior, e de forma interina. Não há qualquer garantia que seus membros – para não falar todas as áreas da companhia – compartilhem algo próximo de uma visão sobre o futuro da Petrobras. Isso sem falar na confusão instalada no conselho de administração, que, após ser reestruturado, perdeu seu presidente e mais dois membros.

Por fim, lembremos do gigantismo. A Petrobras sofre hoje também com importantes deseconomias de escala, que tornaram possível dentre outras coisas os péssimos investimentos recentes e o domínio de algumas áreas por pessoas mal-intencionadas. A empresa, desse tamanho e com essa complexidade, não é administrável (como também não são algumas outras empresas privadas que ficaram grandes demais para seu próprio bem).

A solução dos problemas da Petrobras não pode se resumir a um ambicioso programa de venda de ativos. O impacto seria negativo para a empresa (pode-se vender tudo e sobrar dívida) e para o Brasil. Dada a relevância da Petrobras nas cadeias em que atua, essa alienação pode representar a perda de uma oportunidade de ouro de reestruturação setorial com vistas a melhorar nossa competitividade.

Um exemplo é a alienação de participações em distribuidoras de gás. Ao invés de ter levado à criação de um setor autossustentável e competitivo, criou-se uma holding de participações minoritárias e alienou-se 49%. Ou seja, a Petrobras continua fazendo a mesma coisa, mas fez algum caixa com a operação. Nenhuma preocupação estratégica ou competitiva para a Petrobras ou para o país.

Além de tudo isso, a própria diretoria relata dificuldades no corpo da Petrobras em alienar ativos. Algumas dessas resistências têm até razão de existir. Provavelmente estamos falando do maior programa de privatização da história, sendo executado de forma independente por uma companhia sem os processos, transparência e controle que, por exemplo, marcaram a venda de ativos públicos no passado.

A capitalização, apontada por alguns analistas como a solução, tampouco seria suficiente. Se não consertarmos o modelo, os novos recursos poderão ir para o ralo como foram os da capitalização de 2010. É chegada a hora de repensar a Petrobras de maneira radical.

Sua estratégia não pode mais ser o “deixa comigo que eu faço tudo”. É preciso determinar um tamanho ótimo para a companhia sob três prismas: gerencial (qual tamanho de empresa pode ser administrado racionalmente?), estratégico (quais são as sinergias efetivamente valiosas a se manter integradas?) e de interesse nacional (queremos depender tanto de uma só empresa?).

Entendemos que, uma vez feita essa análise, o ideal seria dividir a Petrobras numa série de empresas, maximizando os resultados dos três prismas. Os acionistas da Petrobras passariam a ser donos de várias empresas, em segmentos que fazem sentido para a empresa e para o Brasil. A atividade de refino, por exemplo, precisa ser exercida por várias empresas, para que a premissa de livre concorrência da Lei do Petróleo possa se tornar realidade.

Feitos os “spin-offs”, a decisão sobre a manutenção do controle estatal de cada uma das empresas seria uma discussão em separado, que a sociedade precisaria enfrentar. Mas o desenho teria a vantagem de otimizar a gestão de um dos setores mais relevantes da nossa economia, trazendo transparência e produtividade. Em outras palavras, gerando valor, que é a única forma de se pagar a monumental dívida que foi imposta pelo governo à Petrobras. No processo, recuperaria-se a credibilidade do nosso mercado de capitais, profundamente abalado pela destruição de centenas de bilhões de dólares de capital público e privado.

Todo esse processo precisa ser liderado por um conselho efetivamente empoderado para tomar decisões dessa monta, com mandato para contratar, demitir e remunerar os gestores. Governança de verdade.

Os funcionários só teriam a ganhar ao participar de empresas e de um setor mais forte. O setor privado teria a energia como vantagem e não desvantagem competitiva. E o Brasil, finalmente, deixaria de ser refém de uma única empresa que, como vimos, pode cair nas garras de agentes nem um pouco alinhados com o interesse público que levou à sua criação em 1953.

Mauro Rodrigues da Cunha e José Guimarães Monforte são ex-conselheiros da Petrobras

Fonte: (Valor)

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