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Hidrelétricas e o meio ambiente

Existem várias áreas do atual governo federal que são problemáticas em razão das visões irrealistas dos seus dirigentes, mas poucas oferecem riscos de gerar problemas futuros como a área energética.

Energia, em todo o mundo, não é somente essencial para as outras atividades da sociedade, tais quais a agricultura, os transportes e a indústria, como também é o setor que mais contribui para a poluição ambiental em todos os níveis.

Durante todo o século 20 o Brasil conseguiu criar um sistema energético limpo e eficiente graças à geração de eletricidade em usinas hidrelétricas, nas quais é ainda produzida a grande maioria da energia que usamos. Além do Brasil e da Noruega, poucos países do mundo conseguiram fazer isso; nos demais, o potencial hidrelétrico foi todo utilizado e o enorme crescimento da demanda exigiu a geração de energia em usinas térmicas movidas com carvão, óleo combustível ou gás natural, cujos impactos ambientais são maiores do que os impactos das hidrelétricas, além de a eletricidade produzida, em geral, ser mais cara. Energia nuclear poderia ser uma alternativa, mas ainda é cercada por muitas incertezas, inclusive ambientais.

No início desta década houve no País uma crise no suprimento de eletricidade, provocando um racionamento que abalou a confiança da população e do governo na confiabilidade da hidrelétrica como fonte de energia. Esse problema, surgido em razão de uma prolongada estiagem que só ocorrera duas vezes nos últimos cem anos, foi enfrentado com sucesso por medidas de racionalização no uso de energia. A médio prazo, contudo, outra solução tem de ser encontrada porque o País está crescendo e, com ele, a demanda de eletricidade. Novos investimentos em geração de energia eram (e são) essenciais para enfrentar os anos que virão e até, eventualmente, novas estiagens.

O atual governo desenvolveu um controvertido novo modelo para o setor energético, como se fosse necessário inventar a roda neste setor, ignorando e/ou dispensando a experiência técnica que se formou ao longo das últimas décadas. Este modelo claramente não está funcionando, como mostram os últimos leilões de energia, que têm sido amplamente discutidos na imprensa. Um dos resultados perversos desses leilões foi o de que a maioria da energia comercializada é de usinas térmicas, o que não só deve encarecer a energia, como vai agravar os problemas ambientais. Em outras palavras, o brilhante novo modelo do setor elétrico está levando o País a abandonar sua vocação natural, que é o uso de seu abundante potencial hídrico – que produz uma energia limpa e renovável -, em claro contraste com as alternativas que o modelo privilegiou.

Tanto o presidente da Eletrobrás como o ex-secretárioexecutivo do Ministério de Minas e Energia e atual presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), este o principal responsável pela formulação do novo modelo, vêm agora a público culpar os órgãos ambientais por esta situação em termos que são inaceitáveis e exigiriam do governo federal medidas disciplinadoras.

Os órgãos estaduais e federais da área ambiental (principalmente o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama) obedecem a uma legislação complexa, que poderia ser simplificada e aperfeiçoada, mas que está em vigor. As autoridades do setor energético citadas acima parecem nem entender o que significa um relatório de impacto ambiental exigido pela legislação. Aprovar projetos de hidrelétricas malconcebidos, como ocorreu no passado em Balbina (AM), não tem sentido, nem econômico nem ambiental; portanto, impedir projetos como este é um imperativo de defesa do interesse público, no que é vigilante o Ministério Público Federal.

O presidente da EPE, uma e mpresa estatal que deve obter a licença ambiental antes de licitar as usinas hidrelétricas (e outras), parece não se dar conta de que preparar projetos ambientais aceitáveis não é tarefa para burocratas do serviço público; r equer, sim, a mobilização de amplas equipes de especialistas, e as exigências do Ibama e dos órgãos ambientais estaduais devem ser levadas a sério.

Este problema não ocorre apenas no Brasil: o debate sobre grandes hidrelétricas ocorre no mundo todo e foi objeto dos trabalhos de uma Comissão Internacional de Barragens. A comissão foi criada pelo Banco Mundial e pela União Internacional para a Conservação da Natureza (que é uma organização não-governamental guardachuva de entidades ambientais). Ela se debruçou durante dois anos sobre os diversos problemas criados por hidrelétricas, como inundação de terras indígenas, deslocamento de populações tradicionais e compensações ambientais, e os comparou com os benefícios que elas trazem para a sociedade como um todo.

O resultado do estudo foi uma série de recomendações que – se adotadas – permitiriam avaliar melhor custos e benefícios, recomendando a construção de usinas em determinados locais (e não em outros).

A adoção dos critérios recomendados pela Comissão Internacional de Barragens tanto por empreendedores (públicos ou privados) como pelos órgãos ambientais permitiria resolver os conflitos atuais sobre a construção de usinas e retornar à tradição do País de ter uma matriz energética mais limpa, com eletricidade de origem hídrica e suplementação térmica a gás onde necessário.

José Goldemberg, secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, foi membro da Comissão Internacional de Barragens

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