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Fora daqui, fora Bush do Iraque

As manifestações de desagrado pela visita de George W. Bush ao Brasil repetem o padrão conhecido. O antiamericanismo brasileiro parece esgotar-se no episódico dessas expressões de descontentamento político que resumem e polarizam complicados processos de proximidade e distância em relação aos Estados Unidos da América. No entanto, ele persiste, ocultamente regulado por fatores históricos que dizem respeito tanto à nossa identidade nacional quanto às necessidades sociais, econômicas e políticas relativas ao nosso destino como nação.

Nosso antiamericanismo nasceu com a proclamação da República e teve como seu mais lúcido e consistente ideólogo o escritor Eduardo da Silva Prado. Seu mal- estar e sua interpretação da República recém-proclamada, como cópia sem imaginação dos símbolos e das instituições americanas, estão no livro A Ilusão Americana. Escrito no final de 1893, durante a fuga do autor, perseguido político da ditadura que deu berço à República, reflete sem dúvida o momento de incerteza política, mas reflete, também, as nossas duradouras determinações históricas.

Na palavra de Eduardo Prado, reagia o nosso catolicismo monárquico ao republicanismo protestante que se queria importar. A separação do Estado em relação à Igreja, efetivada pela República, era boa indicação do afastamento em relação às tradições de nossa identidade. Não é nada estranho, portanto, que nos seus cometimentos em favor da justiça social a Igreja Católica reconheça, no Brasil, como simbolização do mal a dominação do império, forma católica de referência ao que Lênin e os comunistas rotularam de imperialismo. A sociedade americana e o modelo de economia em que se baseia são expressões da ética protestante. Nesses dias de protesto contra a visita do presidente americano, os vários movimentos e organizações originados da Igreja Católica e a ela ligados, como a Pastoral da Terra e o MST, deram o tom nas objeções àquilo que Bush e os Estados Unidos para eles representam, o grande capital, a economia de mercado, o neoliberalismo econômico, o mal, enfim, cujas vítimas remotas podem ser vistas em muitos cantos do mundo.

O “gancho” do protesto foi um dos itens da agenda de encontro entre Bush e Lula, o das restrições à importação do etanol brasileiro pelo mercado americano. O etanol pode abrir grandes horizontes para a economia brasileira. Mas a opção pela produção do combustível verde sofre completa restrição dessas organizações político-religiosas. Tem motivo os que centram nesse tema o seu protesto político à visita de Bush e aos esforços de Lula para obter condições favoráveis ao comércio desse combustível. Trata-se de um produto que prenuncia um agravamento das condições das populações desvalidas do campo, sobretudo aquelas que serão atingidas pela redefinição das funções econômicas da terra em favor dos grandes empreendimentos agrícolas destinados à produção da matéria-prima do combustível.

Os trabalhadores já conhecem essa história. Quando surgiu o Pró-Álcool, em 1975, e começou a produção do carro a álcool, a partir de 1978, grandes extensões de terra foram convertidas em canaviais em detrimento da agricultura de subsistência e de alimentos, o preço dos gêneros alimentícios foi afetado, as relações de trabalho no campo deram um mergulho definitivo na ocupação temporária e precária, favelas e bairros pobres surgiram na periferia de outrora idílicas cidades interioranas. A degradação das condições de vida dessas populações tornou-se visível com a chamada “revolta de Guariba”, em 1984. Foi quando os trabalhadores canavieiros desse município paulista se insurgiram contra o aumento do número de ruas de cana que o trabalhador estava obrigado a colher num dia de trabalho. Os pais tiveram que levar suas crianças para o canavial para completar a medida exigida de cana cortada.

É curioso que o MST e a Pastoral da Terra, de diálogo atravessado com o que é, sobretudo, o seu governo, não tenham convencido Lula a aceitar a possibilidade de fazer da economia do etanol um dos ingredientes de expansão e consolidação da reforma agrária, em vez de oporem-se a esse projeto de interesse nacional. Em nenhum momento pensaram no agronegócio familiar e agrorreformista como um meio de legitimar a reforma e promover o que poderia ser, também, um significativo programa de redistribuição de renda. Como se vê no documento da Campanha da Fraternidade de 2007, da CNBB, o mercado, o negócio e o dinheiro são claramente estigmatizados como responsáveis pela pobreza e a marginalização de populações amazônicas, e não só delas. Esquecem os seus autores da multiplicidade de funções do dinheiro e a diversidade social do mercado, como esquecem que, sem mercado para os produtos agrícolas, a reforma agrária não tem o menor sentido. Estranha contradição: o lançamento do documento foi feito, conforme denunciou a Conferência dos Religiosos do Brasil, em evento patrocinado pela Companhia Vale do Rio Doce, uma das expoentes do capitalismo globalizado e neoliberal. O antiamericanismo do protesto contra Bush fica comprometido por essas extravagâncias. O que é pena, já que em si mesmo o protesto contém um alerta que o governo deveria levar a sério, pois expressa um projeto social legítimo em favor da agricultura familiar.

Não só o nosso governo. Talvez esteja na hora de o governo americano, finalmente, ouvir as palavras do falecido Roberto Simonsen, industrial e fundador da Federação das Indústrias de São Paulo, que, em 1947, propôs que os Estados Unidos incluíssem o Brasil no Plano Marshall. Poderíamos ter tido aqui um desenvolvimento econômico como o que o Plano desencadeou em países derrotados e devastados pela guerra, como a Alemanha e a Itália. Nossa inclusão no plano teria dado outro rumo à nossa história e às nossas relações com os Estados Unidos. Resta saber se ainda há tempo de dar às relações entre os dois países o sentido civilizado e socialmente justo que o antiamericanismo caipira preconiza.

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