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Etanol o mundo quer. O Brasil tem

A negociação foi mantida em absoluto sigilo por seis meses e concluída com discrição na manhã de 10 de junho. Na sala de janelas largas de um prédio comercial em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, estavam apenas o holandês Auke Vlas, representante da trading americana Cargill, maior comercializadora de alimentos do mundo, e o empresário Maurílio Biagi Filho, um dos mais importantes donos de usinas de álcool e açúcar do país. O encontro foi rápido — Vlas trouxe os documentos já assinados e Biagi preencheu as poucas linhas que lhe foram reservadas. A partir daquele momento, o empresário retirou-se da Cevasa, indústria por ele fundada em 1999, e a Cargill finalmente assumiu o controle de uma usina no Brasil, após quase dois anos de tentativas. O detalhe mais revelador do negócio é o fato de a Cevasa não produzir um único grama de açúcar, apenas álcool combustível — o etanol. Com a aquisição, a Cargill ingressa em um novo ramo de negócios no Brasil, o de energia. Sua principal concorrente, a Bunge, também tem feito prospecções no Brasil e, segundo especialistas, deve anunciar em breve uma compra semelhante.

O Brasil no centro da revolução energética

Nos últimos anos, uma forte escalada no preço do petróleo, principal produto da matriz energética global, tem levado o mundo a buscar alternativas. O álcool desponta como a principal promessa

A estréia da Cargill no mercado brasileiro de álcool é o exemplo de uma das mais impressionantes transformações em curso na economia nacional. As usinas de álcool brasileiras, há séculos parte de um cenário que era símbolo do atraso, estão hoje no epicentro de uma revolução energética que envolve todo o planeta. No ano passado, o mercado brasileiro de etanol movimentou 6 bilhões de dólares. Em 2010, deve chegar a 15 bilhões — quase o equivalente ao faturamento atual do negócio de telefonia celular. Seria um equívoco comparar o rápido crescimento do setor com o movimento vivido pelas usinas nas décadas de 70 e 80, quando o governo brasileiro, à base de fartos subsídios, criou o Proálcool, programa oficial de etanol. Desta vez, não é o braço estatal a impulsionar o mercado — mas o próprio setor privado. Além disso, agora o que se vislumbra não é apenas a demanda de carros brasileiros, mas de todo o mundo. Nos últimos seis meses, o etanol foi alçado da condição de produto tupiniquim, confinado ao Brasil, à posição de combustível potencialmente global, em teoria capaz de aliviar de uma só vez dois grandes males do século 21, a escassez do petróleo e o efeito estufa. O álcool entrou na agenda de governantes, empresas de tecnologia e, principalmente, de investidores interessados nas grandes oportunidades que o setor tende a oferecer daqui para a frente. O homem mais rico do mundo, Bill Gates, fundador da Microsoft, comprou 25% da Pacific Ethanol para produzir álcool de milho nos Estados Unidos. Especula-se que Gates esteja prestes a concretizar a aquisição de uma usina de etanol no Brasil. Larry Page e Sergey Brin, do Google, estiveram em janeiro no interior de São Paulo para conhecer a produção local e analisar oportunidades. Outro bilionário, o investidor húngaro George Soros, fechou em fevereiro a compra da usina Monte Alegre, em Minas Gerais. Em 2006, o setor de etanol deve receber investimentos de 9,6 bilhões de dólares, entre construções de novas usinas, aquisições e expansões.

Embalados pela sede mundial de combustível verde, consultores e corretores trocam os elegantes escritórios nas metrópoles e se deslocam para o interior em busca de usineiros interessados em fazer parcerias ou vender seus negócios. Bancos rivais, como o UBS/Pactual e o Credit Suisse Group, agora disputam clientes entre produtores de cana na tentativa de lançar ações de usinas na bolsa de valores. Mesmo com a atual instabilidade dos mercados financeiros, o primeiro fundo de private equity criado para usinas, com patrocínio do banco francês Société Générale, conseguiu arrecadar mais de 200 milhões de dólares em pouco mais de um mês. A tendência é que feche o ano com 1 bilhão em carteira. A Votorantim, um dos maiores grupos empresariais do país, é uma das empresas com atuação mais marcante no mercado de etanol. Nos últimos três anos, a empresa da família Ermírio de Moraes investiu 40 milhões de dólares em duas empresas destinadas à pesquisa de ponta no setor. Até mesmo as petroleiras, em princípio contrárias ao sucesso do etanol, já perceberam que não dá para ignorá-lo. No início de junho, a anglo-holandesa Shell passou a exportar álcool brasileiro para os Estados Unidos, o maior mercado mundial. Nos últimos meses, representantes das tradings japonesas Mitsubishi e Mitsui circulam pelo interior do país prospectando negócios. O próprio mercado de trabalho no Brasil deve sentir os efeitos do crescimento do setor — executivos de várias indústrias já percebem as oportunidades que vão se abrir com a profissionalização da gestão das companhias de etanol. “Estamos assistindo a uma verdadeira corrida do ouro”, diz Marcelo Junqueira, sócio da Econergy, empresa americana especializada em comercializar crédito de carbono e dona de um fundo com 100 milhões de dólares para investir em energias renováveis. “Não faltam bons negócios.”

O que está aguçando o apetite de tanta gente é a projeção de que o mercado internacional de álcool, hoje ainda modesto, crescerá exponencialmente nos próximos anos. Nos últimos meses, vem se consolidando a percepção de que a era do petróleo barato está perto do fim. “A aposta é que a cotação se mantenha elevada daqui para a frente, pois custa caro explorar as reservas que restaram”, diz Shigeaki Ueki, ex-ministro de Minas e Energia e consultor na área de petróleo. A aposta é que a frota mundial de automóveis terá, necessariamente, de adotar a mistura de gasolina e álcool nos próximos anos, seguindo o modelo pioneiro do Brasil. A indústria automobilística mundial já aderiu em massa aos veículos bicombustíveis, que permitem o uso tanto do álcool como da gasolina (veja reportagem na pág. 28). Portanto, do ponto de vista tecnológico, as condições para o sucesso do etanol estão equacionadas. O que falta, agora, é que mais países adotem o novo combustível.

O sinal mais vigoroso de que isso pode ocorrer em breve veio do presidente americano, George W. Bush. Bush é um republicano típico, pouco afeito a programas ambientais e com sólidas ligações com as maiores petroleiras do mundo. Mesmo carregando esse currículo, em janeiro passado condenou publicamente “o vício americano pelo petróleo” e passou a defender enfaticamente as energias renováveis. Os americanos são donos de 40% da frota de veículos do planeta, mas o álcool responde por apenas 2,5% do mercado local de combustíveis. Pelos planos do Departamento de Energia dos Estados Unidos, até 2030 essa participação subirá para 30%, o que representa o consumo de impressionantes 230 bilhões de litros — ou 14 vezes a produção brasileira de álcool combustível prevista para este ano. “O etanol é a principal alternativa ao petróleo”, diz Lawrence Russo, coordenador do Programa de Biomassa do Departamento de Energia americano. O combustível conta também com o apoio da oposição — a senadora democrata Hillary Clinton, virtual candidata à sucessão de Bush, pediu que o senado libere 1 bilhão de dólares em pesquisas com etanol. Com tais movimentos, acredita-se que os Estados Unidos levem outros países a seguir a mesma rota. Afora Suécia, Austrália e um punhado de países, o restante do globo só começou a avaliar com seriedade o álcool recentemente.

Esse despertar mundial coloca o Brasil à frente da corrida da energia alternativa — o que não é pouca coisa. E estimula potenciais produtores. Jamaica, Nigéria, Índia e outros países que cultivam cana tentam organizar a produção inspirados nos moldes brasileiros. A criação de mercados pelo mundo é considerada fundamental pelos produtores locais. A percepção é que, enquanto o Brasil for quase monopolista no comércio internacional de álcool, dificilmente será possível convencer os países desenvolvidos a misturá-lo à gasolina. “A experiência do petróleo ensinou que a concentração da produção de combustível não é boa para os países consumidores, que se tornam dependentes”, diz Eduardo Pereira de Carvalho, presidente da União da Agroindústria Canavieira. “É importante que vários países fabriquem etanol para que haja segurança de abastecimento.”

Ainda assim, dificilmente algum outro será capaz de tirar a liderança brasileira nesse campo, pelo menos no curto prazo. O Brasil tornou-se uma espécie de meca na produção em larga escala de combustíveis renováveis graças a uma perfeita combinação de clima, extensão territorial e reservas de água. A produtividade é de longe a maior do mundo. De cada hectare de cana plantada no país, produzem-se 6 800 litros de álcool. Nos Estados Unidos, hoje o maior produtor mundial de etanol, o álcool é feito de milho, e cada hectare da cultura gera 3 200 litros de álcool — abaixo da metade do rendimento brasileiro. O preço da produção nacional é igualmente imbatível. O litro custa cerca de 20 centavos de dólar, ante 47 centavos do álcool de milho americano e 32 centavos do álcool de cana produzido na Austrália. “A beleza do processo brasileiro está principalmente na eficiência ambiental”, diz Plinio Nastari, diretor da Datagro, consultoria especializada em açúcar e em álcool. “No Brasil, as máquinas que fabricam o álcool são movidas à energia elétrica produzida pela queima do bagaço de cana, o que reduz os custos. Nos Estados Unidos, o processo depende da energia gerada do carvão, do óleo combustível ou do gás natural, o que encarece o produto final.” Para proteger os produtores americanos de milho, a importação do álcool brasileiro é taxada, o que fere sua competitividade. Hoje há muita pressão pela derrubada dos impostos. Dois projetos que tramitam no Congresso americano suspendem a cobrança. Jeb Bush, governador da Flórida e irmão do presidente, vem fazendo uma cruzada para derrubar a taxação sobre o produto brasileiro. Se a mobilização vingar, o Brasil deve virar um pólo ainda maior de atração de investidores — o que muitos consideram a senha para a transição de um setor com ilhas de atraso para a modernidade.

Os produtores brasileiros ainda dominam a fabricação de álcool no país — e é difícil prever hoje por quanto tempo essa realidade deve se manter. Há em operação no Brasil cerca de 350 usinas, a maioria delas controlada por famílias tradicionais, como Ometto, Junqueira, Balbo, Zillo e Lyra. Apenas 3% desses negócios estão em mãos de grupos estrangeiros. Há hoje quase 100 usinas de álcool sendo construídas sobretudo por empresários locais. “Entender as peculiaridades da produção agrícola no Brasil não é para qualquer um”, diz Pedro Mizutani, vice-presidente executivo da Cosan, o maior grupo privado brasileiro do setor. “Os estrangeiros têm dificuldade em lidar com a produção agrícola e de entender as legislações tributária e trabalhista.” É por isso que — pelo menos por enquanto — os investidores de fora têm optado por assumir o controle de usinas, mas deixar a parte agrícola para os brasileiros, como fez a Cargill na Cevasa. A multinacional americana ficou com pouco mais de 60% de participação. O restante ainda pertence à Canagril, uma sociedade de agricultores que fornecem a cana.

Quando se olha para o futuro, no entanto, é possível visualizar um agressivo aumento da participação dos estrangeiros. “Pelo menos 30% das sondagens que recebemos de novos projetos de usinas é de estrangeiros”, diz José Luiz Olivério, vice-presidente de operações da Dedini, a maior indústria de equipamentos para construção de usinas de etanol do mundo. “Se os negócios forem efetivamente fechados, vamos assistir a uma radical mudança no perfil do setor e no tamanho do mercado.” O crescente interesse dos estrangeiros já está produzindo uma superlativa valorização das usinas. Unidades pequenas, muitas delas com problemas financeiros, esqueletos tributários e dívidas trabalhistas, estão sendo avaliadas pelos donos em 50 milhões de dólares. As maiores e mais produtivas podem ser cotadas em meio bilhão de dólares.

É um dinheiro considerável. E, assim como aconteceu com os setores de autopeças e de têxteis na década de 90, a maior parte dos empresários brasileiros do etanol enfrenta o momento de definir qual será seu papel no futuro. “Os acionistas precisam decidir se vão continuar sozinhos, buscar associações com estrangeiros ou esperar a melhor oferta para uma boa venda”, diz Renato Gennaro, especialista em agronegócio da BCS, área de consultoria da IBM. “A tendência é que haja forte processo de consolidação, com fusões e aquisições, pois escala será fundamental.” Na Nova América, empresa que detém a marca de açúcar União, a opção é crescer. Roberto Rezende Barbosa, presidente do grupo, estuda a possibilidade de abrir o capital para expandir os negócios com álcool. “Daqui para a frente será necessário produzir em escala mundial”, diz Barbosa. “Quem quiser competir precisa se preparar.” A Nova América tem uma estrutura de comando incomum no setor. O poder está nas mãos de Roberto e dois irmãos. Três pessoas, portanto, tomam as decisões. Em muitas usinas, o patrimônio está dividido entre dezenas de parentes com os mais diversos pontos de vista e idiossincrasias pessoais. Eleger estratégias é uma operação delicada.

É o que se vê, por exemplo, na Vale do Rosário, uma das melhores e maiores usinas do país, localizada em Morro Agudo, no interior de São Paulo. A Vale do Rosário tem uma centena de acionistas. Em julho, o grupo deve se reunir para discutir o futuro do negócio. Alguns acionistas acreditam que o momento é ideal para vender a empresa. Outros pensam que o melhor é abrir o capital para financiar uma expansão mais agressiva. Se prevalecer essa segunda opinião, a Vale seguirá os passos da Cosan, empresa dona de 16 usinas e única do setor com ações cotadas na bolsa de São Paulo. “Nos próximos cinco ou dez anos, vamos dobrar nossa participação e atingir 20% do mercado interno”, diz Rubens Ometto Silveira de Mello, controlador da Cosan. Mesmo com os preços em alta, a empresa mantém a estratégia de aquisições para se manter na liderança do setor. Paralelamente, estuda a possibilidade de ingressar no mercado americano.

A supremacia brasileira no mercado de álcool, no entanto, não deve ser encarada como definitiva. O país tem debilidades que tendem a agravar-se com o tempo. A mais perigosa é a falta de investimentos em ciência e tecnologia. Assim como o desenvolvimento de novos tipos de soja levou a produção de grãos para o cerrado, o desenvolvimento de novas espécies de cana, resistentes a pragas e adaptadas a regiões mais áridas, será fundamental para abrir novos pólos de produção e elevar a produtividade. A cultura já está migrando. Novas usinas estão sendo erguidas em Minas Gerais, Goiás, Paraná e até no Pará. O trabalho científico, no entanto, está concentrado em poucas instituições, como o Centro Tecnológico Canavieiro, algumas universidades federais e as empresas privadas CanaVialis e Alellyx, mantidas pela Votorantim Novos Negócios (VNN). “Num cenário de 30 anos, os Estados Unidos tendem a utilizar essa tecnologia para reduzir dramaticamente o custo de produção”, diz Fernando Reinach, diretor da VNN. “Se o Brasil não investir em pesquisa, não conseguirá manter custos competitivos.”

Outra falha elementar é a falta de infra-estrutura. A maior parte do álcool produzido no país deixa a usina em caminhões, um meio de transporte caro que compromete a rentabilidade de áreas no interior do país. Também falta estrutura nos portos. “Se algum importador comprar álcool hoje, vai ter de esperar até setembro para receber”, diz o empresário Maurílio Biagi Filho. Parte da solução do problema estaria na construção de alcooldutos cortando o país. Um projeto da Petrobras prevê a abertura de um duto que ligaria Goiás à refinaria de Paulínia, em São Paulo, passando pelas principais regiões produtoras. Para o economista Guillaume Le-Fur, diretor da Diapason Management, empresa suíça especializada em commodities, a presença de uma companhia como a Petrobras é estratégica para o mercado brasileiro. “Uma grande empresa com capital, capaz de competir com as petroleiras, será decisiva para a expansão do mercado de álcool”, diz Le-Fur. Os empresários, no entanto, vêem com desconfiança o avanço da estatal. A Petrobras monopolizou o mercado interno de gasolina e de gás natural, e suspeita-se que tente fazer o mesmo com o álcool.

O ponto nevrálgico para o sucesso do Brasil, no entanto, está nas mãos dos usineiros: garantir a produção do álcool. Pode parecer um item primário na sofisticada agenda do setor de energia, mas historicamente os usineiros locais reduzem a produção de álcool toda vez que o preço do açúcar sobe — e neste momento ele nunca esteve tão alto. Essa velha artimanha para aumentar o faturamento da usina no curto prazo tende a minar a confiança dos consumidores de outros países. “O mercado de combustíveis trabalha com contratos de longo prazo que precisam ser respeitados”, diz José Ronaldo Rezende, consultor da PricewaterhouseCoopers. “Temos de colocar o pé no chão para não fazer besteira”, diz João Lyra, presidente do Grupo João Lyra, um dos mais modernos do setor. “Não respeitar contratos pode ser fatal para as empresas e para o país.”

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