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Está na hora de descobrir a Índia

Para a maioria dos brasileiros, a Índia traz à mente a imagem de uma terra longínqua, com seus templos religiosos, músicos tocando cítaras e uma pobreza de proporções inigualáveis. Um país exótico, misterioso, intrigante — mas a anos-luz de distância de tudo que seja minimamente ligado a modernidade e prosperidade. Já a Índia que se apresenta a empresários e executivos de muitas das maiores empresas do mundo é a protagonista de um dos maiores milagres de crescimento econômico da história recente. Mais que isso, é um terreno fértil de oportunidades, o país no qual se deve prestar atenção para realizar muitos e bons negócios, sob pena de ficar para trás na corrida do desenvolvimento do século 21. Essas visões tão diferentes sobre a mesma Índia ficaram evidenciadas em duas pesquisas recentes. No Brasil, um levantamento do Instituto de Estudos e Comércio Internacional, realizado com presidentes e executivos das maiores empresas do país, mostrou que 60% deles não têm interesse algum em aprofundar relações comerciais com o mercado indiano. É mais um caso em que o Brasil segue na contramão do mundo. Segundo estudo da PricewaterhouseCoopers, 64% de 1 400 presidentes de empresas de todos os continentes apontam a Índia como destino certo de investimento nos próximos três anos.

Os sinais de que é preciso descobrir a Índia moderna com urgência são eloqüentes. O país tornou-se a nova estrela da economia asiática depois que decidiu, em meados dos anos 80, abrir sua economia e deixar para trás três décadas de estagnação promovidas pelo regime socialista. Os resultados da guinada foram notáveis. A Índia está crescendo ao ritmo de 6% ao ano há 25 anos, o dobro da taxa mundial. Segundo o banco americano Goldman Sachs, o país terá a terceira maior economia do mundo até 2035, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. Hoje, a Índia já exerce o papel de destaque em áreas importantes. É o quarto maior fabricante de medicamentos do mundo e o maior exportador de serviços de tecnologia da informação do planeta. Dos 30 bilhões de dólares do mercado de terceirização de desenvolvimento de software e serviços de call center, a Índia fatura 18 bilhões de dólares, ou seja, mais da metade de tudo o que o mundo terceiriza nessas áreas.

As marcas do crescimento indiano são visíveis por todos os lados. Praticamente todas as ruas de Mumbai, o mais importante pólo econômico do país, estão rasgadas por valas. Serão alargadas e receberão nova estrutura de água e esgoto. O caminho entre a capital, Délhi, e Gurgaon, cidade vizinha que se transformou num importante centro de negócios nos últimos 15 anos, também funciona como um bom retrato da transformação em curso no país. Da estrada é possível acompanhar a obra de uma nova rodovia, concebida para dar vazão ao fluxo de carros, que aumentou com a chegada das indústrias. Também se observam os arranha-céus espelhados, que brotam de uma paisagem ainda dominada por prédios e casas humildes. Nos shopping centers de Gurgaon, lojas de redes americanas e européias, como Tommy Hilfiger, Benetton e Boss, atendem o público jovem que começa a trocar as vestes tradicionais indianas pela moda ocidental.

Esse potencial de consumo chama a atenção dos investidores estrangeiros. Trata-se de um país com 1,1 bilhão de habitantes, muitos deles pobres, é verdade. Mas existe por lá também uma das maiores classes médias do planeta, com 300 milhões de pessoas — ou seja, quase dois “Brasis” inteiros de consumidores, que começam a exigir produtos e serviços mais sofisticados.

Para satisfazer essa demanda, nos últimos dois anos foram construídos 100 shopping centers no país e outros 250 serão inaugurados até 2008. São números que impressionam — e atestam a velocidade feroz da construção civil indiana. O setor cresceu 8% em 2005, ante apenas 1,3% do Brasil. A telefonia também passa por notável evolução. Entre 2000 e 2005, o número de celulares do país decuplicou, passando de 5,6 milhões para 55 milhões. Nas ruas das grandes cidades, até faxineiros e operários andam com aparelhos modernos na mão. A aviação comercial indiana cresce anualmente 25% desde 2003, o que colocou a Índia como o segundo maior mercado desse setor no mundo.

Por esses motivos, a Índia é considerada hoje um jogador de peso na geopolítica e na economia global. O país virou a vedete da última edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, no fim de janeiro. Em março, o presidente americano, George W. Bush, visitou a Índia. Aproveitou a ocasião para aprofundar as relações comerciais entre os dois países. Empresas americanas, como Microsoft, HP e Cisco, já possuem enormes contingentes de funcionários no país. Em março, Michael Dell, presidente mundial da Dell Computers, anunciou que dobrará a quantidade de funcionários da empresa na Índia em três anos, chegando a 20 000 pessoas. A subsidiária indiana da Schindler, maior fabricante mundial de elevadores e escadas rolantes, é a que mais cresce entre os mais de 100 países onde a companhia opera. Diante do processo de enriquecimento da classe média, empresas do setor de alto luxo têm apostado no crescimento do país. A chegada mais recente foi da francesa Christian Dior, que abriu sua primeira loja na cidade de Chennai, em fevereiro.

Diante desse cenário de boom econômico, a reação dos empresários brasileiros ainda é tímida. É verdade que o comércio entre os dois países quase triplicou entre 2004 e 2005, atingindo 2,3 bilhões de dólares, mas a cifra é insignificante diante do potencial econômico que há entre as duas nações (veja quadro acima). Um único negócio, a venda de dez aviões da Embraer para o governo e empresas indianas, estimado em 263 milhões de dólares, respondeu por mais de 10% de todo o comércio bilateral. Atualmente, apenas 36 empresas indianas operam no Brasil. Do lado brasileiro, só a catarinense Weg, maior fabricante de motores elétricos da América Latina, possui subsidiária na Índia. A Weg instalou seu escritório comercial em Bangalore em 2004. “Nosso objetivo é estar onde haverá crescimento, e lá é um mercado certo para isso”, diz Décio da Silva, presidente da Weg. No escritório indiano da companhia, a missão dos dez funcionários, dentre eles apenas um brasileiro, é vender motores e geradores de energia para pequenas centrais hidrelétricas. No primeiro ano de atividade, a subsidiária faturou 10 milhões de dólares. “Além de ter de produzir energia para sustentar o crescimento econômico, a Índia terá de mecanizar grande parte de seus processos de produção”, afirma Satyajit Chattopadhyay, diretor-geral da Weg na Índia, sentado de costas para o altar repleto de imagens de deuses hindus que mantém atrás de sua mesa.

De fato, os especialistas apostam que a mecanização será um passo inevitável da Índia em seu caminho rumo à modernidade. Por enquanto, a mão-de-obra extremamente barata faz com que homens e mulheres sejam usados no lugar de máquinas em praticamente todos os setores da economia indiana. O atraso na construção civil, por exemplo, é flagrante. Mesmo nas obras de prédios sofisticados é comum ver dezenas de mulheres — responsáveis pelas tarefas mais pesadas — quebrando pedras com marretas e carregando bacias de concreto na cabeça. Quando é preciso levar o concreto a andares superiores, os trabalhadores postam-se em filas nos andaimes de bambu e vão passando as bacias de mão em mão. “Precisamos dar vários saltos de produtividade, e esses saltos precisarão de motores”, diz Chattopadhyay.

Essa necessidade de modernização faz do setor de infra-estrutura uma das áreas em que as oportunidades são particularmente atraentes para as empresas brasileiras. Estima-se que as necessidades imediatas de infra-estrutura do país somem 150 bilhões de dólares. Por isso, o assunto virou uma das prioridades nacionais. Nesse momento, há 48 novos sistemas rodoviários em construção, cujos investi mentos totalizarão 12 bilhões de dólares. O governo estima que serão necessários mais 24 bilhões de dólares para reformar e ampliar as estradas já existentes. A Índia também está investindo 22 bilhões de dólares num programa de modernização dos 12 portos federais do país. Atualmente quatro aeroportos estão sendo reformados e terão sua gestão privatizada em 2006. Por causa desse panorama, as construtoras Camargo Corrêa e Odebrecht passaram a estudar o mercado indiano.

A febre do crescimento econômico indiano trouxe à tona uma discussão de fundo sobre como será possível sustentá-lo nas próximas décadas. O governo considera estratégico garantir fontes de energia para que pessoas possam se locomover e as máquinas funcionar. Por isso mesmo, um dos setores mais promissores é o de combustíveis, especialmente de álcool. Brasil e Índia são os maiores produtores mundiais de cana-de-açúcar. Os especialistas mais entusiasmados falam na formação de uma “Opep do álcool”, formada por meio de parcerias e intercâmbios entre os dois países. “Queremos diminuir nossa dependência da importação de petróleo, que representa 70% do nosso consumo”, afirmou a EXAME Anand Sharma, ministro de Relações Externas indiano. Hoje, a Índia já é um grande consumidor de etanol brasileiro. O volume de negócios pode aumentar. Nove dos 28 estados indianos obrigam a mistura de 5% de álcool na gasolina. O governo indiano também vem cortejando a Petrobras, interessado em sua tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas. “Adoraríamos ter a Petrobras em nosso país”, diz o ministro Sharma. A companhia não tem operações na Índia, mas considera o país alvo prioritário de novos investimentos fora do Brasil.

Uma área ainda praticamente inexplorada na Índia é a de alimentos processados. Cerca de 85% do leite é consumido in natura, sem passar por nenhum processo de industrialização. O mesmo ocorre com a carne de frango, já que a maior parte das aves é vendida viva. São hábitos de consumo que vêm mudando com o crescimento da classe média. Os novos consumidores indianos estão seduzidos por alimentos mais sofisticados. Em função disso, o governo mostra-se ávido por receber empresas estrangeiras. “A Sadia, por exemplo, seria muito bem-vinda no país”, diz Hardeep Puri, embaixador indiano no Brasil.

As oportunidades para as empresas brasileiras existem até mesmo em áreas em que os indianos brilham, como a tecnologia. Nesse caso, a lógica é: se não pode vencê-los, junte-se a eles. Foi o que fez a empresa paulista Impactools, especializada em sistemas para seguradoras. Desde 2001 a Impactools vende seus softwares para o mercado indiano por meio de uma associação com a PGS/TCS, do grupo Tata, um dos maiores conglomerados industriais da Índia. “Exportamos para lá cerca de 1 milhão de reais por ano”, afirma Aurimar Cerqueira, fundador da Impactools. Apesar de o volume de vendas ainda ser relativamente baixo, Cerqueira se diz otimista, pois enxerga a Índia como um grande portão de entrada para outros países do mercado asiático. “Num futuro próximo, esse fator multiplicará nossos ganhos naquele mercado”, afirma.

O processo de abertura comercial da Índia começou no início da década de 80, quando o então primeiro-ministro, Rajiv Gandhi, reduziu as tarifas de importação de máquinas e equipamentos, cortou os impostos sobre lucros e exportações e diminuiu o número de setores em que a iniciativa privada precisava de licença do governo para operar. No início da década de 90, as reformas foram aprofundadas. As empresas privadas receberam autorização para atuar em setores como o bancário, o de software e o de telecomunicações, e os investimentos estrangeiros foram, enfim, autorizados a entrar no país. “A Índia foi obrigada a reformar a economia porque já perdia o fôlego, devido à asfixia estatal”, diz Ranjit Pandit, presidente do escritório indiano da consultoria McKinsey. “O país também precisava diminuir a defasagem em relação à China, o que é considerada uma questão de segurança nacional.”

As comparações entre os dois gigantes emergentes são inevitáveis. Os chineses estão na frente em vários quesitos, como tamanho do PIB e volume de intercâmbio comercial com o mundo. Por outro lado, o processo de liberalização econômica indiana é muito mais recente e há vários indicadores mostrando que seu crescimento pode ser mais sustentável do que o do rival asiático. Um dos trabalhos mais importantes a endossar essa tese é de autoria do banco de investimentos Goldman Sachs. O estudo compara as possibilidades futuras dos quatro países que formam o bloco apelidado de BRIC — Brasil, Rússia, Índia e China. Na competição de desempenho com os outros emergentes, a Índia seria a única com ca pacidade para sustentar uma taxa de evolução do PIB superior a 5% ao ano até 2050.

Há vários elementos que justificam a previsão de um crescimento tão longevo, a despeito dos índices de pobreza e de outros problemas enfrentados pelo país na atualidade (veja quadro na pág. 45). A Índia conta com uma demografia favorável à expansão econômica. Metade de sua população está abaixo dos 25 anos, o que significa que essas pessoas permanecerão trabalhando, pagando impostos e consumindo por muitos anos. O segundo fator em que os economistas se apóiam para justificar suas projeções é a continuidade das políticas econômicas. “Às vezes, as coisas andam mais devagar no governo, mas no geral a economia segue um caminho coerente”, afirma o economista indiano Arvind Panagariya, professor da Universidade Columbia, nos Estados Unidos.

O sistema político também ajuda a manter a trajetória de crescimento do país. Enquanto a China tem um regime fechado, a Índia é a maior democracia do mundo. O bom funcionamento de seu parlamento, que sustenta atualmente o primeiro-ministro, Manmohan Singh, representa um autêntico milagre, diante das enormes disparidades culturais existentes entre sua população. A Índia é uma espécie de babel, onde 80% de hindus convivem com a segunda maior população muçulmana do planeta e onde se falam 18 línguas oficiais e quase 1 000 dialetos. Na área de ensino superior, o país não apenas bate de longe a China como se tornou uma referência mundial. A Índia é uma autêntica incubadora de engenheiros e cientistas no mundo — 300 000 por ano, enquanto a China forma 200 000, e os Estados Unidos, 60 000. Os cérebros indianos não se destacam apenas em quantidade, mas também em qualidade. Para ingressar numa universidade de primeira linha, os candidatos passam por um funil estreitíssimo. “A pressão na época dos exames é muito forte, e a expectativa dos pais é enorme, pois sabem que, se entrarmos, nossa carreira estará garantida”, afirma Anuarag Kumar, de 21 anos, estudante de engenharia mecânica no Instituto de Tecnologia Indiano de Délhi, um dos sete centros de excelência no ensino de ciências exatas do país. “É muito comum os reprovados entrarem em depressão e há até casos de suicídio.”

A comparação entre China e Índia também pode ser útil para iluminar as decisões de negócios do empresariado brasileiro. A arrancada chinesa começou ainda nos anos 70 e ganhou consistência nas décadas seguintes. Nesse período, a prioridade das empresas brasileiras era simplesmente sobreviver — dado o ambiente econômico de instabilidade selvagem existente no Brasil. O fato é que, enquanto por aqui os governos lutavam para controlar a inflação e obter um mínimo de ordem, capitalistas dos mais diferentes países ocupavam espaço em solo chinês, hoje em via de se transformar no maior mercado do planeta. “Sobraram para os retardatários apenas aquilo que não interessava aos pioneiros”, diz Ragvinder Rekhi, vice-presidente da consultoria americana Dua Consulting, especializada em assessorar multinacionais no mercado indiano. “Se os brasileiros não aproveitarem logo as oportunidades na Índia, podem encontrar adiante situação semelhante.” Mesmo com todos os obstáculos, as diferenças culturais, a pobreza extremada, as coisas estão ocorrendo rapidamente na Índia. Ignorar isso pode cobrar um preço alto no futuro.

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