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ENTRE O PRATO E O TANQUE

Olivier de Schutter, formado pela Universidade de Louvain, na Bélgica, é especialista em direitos humanos – mas direitos humanos no contexto da economia global. Como relator da entidade para o Direito à Alimentação da ONU, ele participou da reunião em Genebra que discutiu a crise dos alimentos na semana passada. No encontro, pediu trégua na disputa entre o prato de comida e o tanque de combustível. De Schutter falou a VEJA.

Os biocombustíveis podem ser acusados pela atual crise nos alimentos?

A corrida pela produção de agrocombustíveis é um dos fatores, como reconhecem todos os observadores imparciais da atual crise. Joachim von Braun, diretor do International Food Policy Research Institute, estima que a demanda por agrocombustíveis pode ser responsável por até 30% do atual aumento no preço dos alimentos. É uma cifra difícil de definir porque há diversos fatores interagindo na definição dos preços.

Se não são os únicos responsáveis, por que os biocombustíveis viraram o vilão da crise?

O centro do problema é muito simples. Os alimentos e os combustíveis estão competindo por terras produtivas, que são escassas. Isso significa que haverá menos comida para, em troca, encher o tanque dos automóveis. A menos que haja aumento da produtividade agrícola, onde isso ainda for possível, ou que se derrubem as florestas para ampliar a oferta de terra produtiva.

O biocombustível do Brasil, que vem da cana-de-açúcar, não é diferente dos outros?

A situação do Brasil é específica. O bioetanol brasileiro causa menos dano ao meio ambiente do que o milho americano ou o óleo de canola europeu. Mas a especificidade brasileira não decorre tanto disso, e sim do fato de que a indústria de biocombustível é importante desde meados dos anos 70, quando o Proálcool foi lançado. Hoje, 54% da cana-de-açúcar cultivada no Brasil vai para o etanol. É uma indústria que fornece trabalho a ampla parcela de trabalhadores e lucros a boa quantidade de usineiros. Seria irresponsável não levar em consideração as dimensões sociais da cana no Brasil. Por isso, não estou pedindo moratória na produção de agrocombustíveis.

O congelamento dos investimentos não é mais ou menos a mesma coisa?

Estou pedindo três coisas. O congelamento de novos investimentos no setor, o que implicaria, naturalmente, que Estados Unidos e Europa renunciassem às metas de aumento no consumo de agrocombustíveis. Peço também pesquisa de desenvolvimento de agrocombustíveis a partir da biomassa. Esse combustível de “segunda geração”, ao contrário dos agrocombustíveis de “primeira geração”, não viria da plantação de alimentos. Além disso, a energia da biomassa é ambientalmente mais saudável, embora sua produção requeira um consumo mais elevado de água, o que pode comprometer sua sustentabilidade. A terceira coisa que peço é investimento em pesquisa com culturas menos conhecidas, como o arbusto jatrofa ou o sorgo-doce, que podem ser usados na produção de agrocombustíveis sem competir com a produção de alimentos. A jatrofa pode ser cultivada em terras impróprias para a plantação de alimentos, e o sorgo-doce pode ser destinado tanto para comida quanto para a produção de energia, dependendo da parte da planta que se aproveitar.

Suas propostas tratam o etanol brasileiro do mesmo modo como os outros biocombustíveis, não?

Posso dizer que estou ansioso para conversar com as autoridades brasileiras sobre essas questões todas. Claro que, à luz de qualquer nova informação que eu receba, certamente posso reexaminar e redefinir minha posição, que é defender da melhor forma possível o direito à alimentação adequada.

Não há exagero no destaque que se dá aos biocombustíveis na atual crise de alimentos?

A crise, num nível estrutural, decorre de um desequilíbrio entre oferta e procura no mercado internacional. De um lado, temos uma população crescente – que chegará a 9,2 bilhões de pessoas em 2050 –, e que está mudando seus hábitos alimentares. As economias emergentes, o aumento da urbanização, o crescimento da classe média nesses países, tudo isso leva à maior demanda por proteínas. É uma mudança bem-vinda, mas, do outro lado, do lado da oferta, há sérios problemas. Desde os anos 80, os investimentos agrícolas têm sido insuficientes. Estamos agora pagando o preço pela falta de interesse dos países em desenvolvimento na agricultura.

Thomas Malthus, que previu a catástrofe da fome mundial, não estava tão errado assim?

A visão de Malthus era caricatural e, naturalmente, subestimou grosseiramente nossa habilidade de aumentar a produtividade e conviver com o crescimento populacional. Mas a teoria corrente de que as forças do mercado bastam para equilibrar oferta e procura também está equivocada. A agricultura se adapta muito lentamente às flutuações de preço, e o espectro da expansão agrícola não é infinito.

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