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Em Roncador, mandioca substitui cana-de-açúcar

Por mais de duzentos anos, a cana-de-açúcar dominou a economia nordestina, criando uma monocultura de grandes extensões de terra, que ainda hoje marca a paisagem na Zona da Mata. No entanto, muito antes dos canaviais, a mandioca era o principal produto. Cinco séculos depois, o principal produto de subsistência dos povos índigenas recupera o seu espaço histórico como item de subsistência e comercialização. Para pequenos agricultores do assentamento Roncador, no município de São Benedito do Sul, a 179 quilômetros do Recife, na Mata Sul, o tubérculo é o principal produto de cultivo.

Cícero Antônio, 57 anos, viu muitos amigos partirem para o Sudeste. Mas decidiu ficar no assentamento: “Tudo o que sei está aqui” Foto: Rafael Medeiros/Setur DivulgaçãoNo terren o do antigo Engenho Roncador, eles mantém uma casa de farinha que serve de fonte de sustento para 32 famílias carentes. A produção artesanal está encravada em uma área de 257 hectares, próxima a uma reserva de mata atlântica. A propriedade, que pertencia à família Buarque, acabou sendo loteada. E o engenho, que nos tempos prósperos produzia mel de engenho, rapadura e cachaça para todo o estado, foi desativado há cerca de duas décadas. Hoje a população do assentamento rural, formada por ex-trabalhadores do Engenho Roncador, vive, basicamente, da cultura de subsistência. Na terra, dada a eles por usufruto, os agricultores plantam de tudo: batata, macaxeira, feijão, milho, cana-de-açúcar. Mas, sobretudo, mandioca.

Uma associação foi criada para vender a farinha

A todo vapor de dia e de noite, a casa de farinha interfere na rotina dos moradores do campo. Isso porque as atividades começam ainda de madrugada e se estendem até a manhã seguinte, quando sai a primeira fornada . Os trabalhadores acordam cedo, às 3h, para começar a descascar as raízes colhidas na roça. Todos participam de cada etapa do processo de produção, dividida por gênero: enquanto os homens se ocupam de triturar e secar a farinha, cabe às mulheres tirar a casca e extrair o amido em coadores de pano. O ralador da mandioca era, inicialmente, movido pela força-motriz da roda dágua, que recebia a água da nascente do rio. Há cinco anos, porém, o moinho foi substituído pelo motor a diesel.

Artesanal – A máquina é o único elemento moderno em meio a um cenário de museu vivo. A produção, como um todo, guarda as mesmas características das casas de farinhas coloniais. Depois de descascada, a mandioca é colocada de molho na água para amolecer. Em seguida, ela é triturada e coada até eliminar um líquido ácido, denominada de manipueira. Em cima de uma peneira, a massa passa por uma nova coagem, desta vez para tirar a “crueira”, a parte grossa da mandioca. E, enfim, é secada. Essa etapa d ura uma hora. A última fase é a secagem da farinha em cima de um forno a lenha e carvão. E também a mais delicada: por cerca de duas horas, o trabalhador varre a farinha e, sob um calor de mais de 100ºC, tenta evitar que ela torre demais.

“É trabalhoso, mas tem que fazer”, comentou o agricultor Agnaldo Silva, 20 anos, que concluiu o ensino médio e trabalha na casa de farinha há um ano. Além dele, divide a tarefa de “atucalhar” a farinha o trabalhador rural José Clécio da Silva, de 18 anos. “O calor é muito forte. Incomoda um pouco, mas estamos acostumados”, disse. Mais leve, porém não menos trabalhoso, é o serviço de raspar a casca da mandioca. Compenetrada no seu ofício, a agricultora Andreza Maria Porciúncula, 19 anos, senta no chão, acompanhada da irmã de apenas dois anos, ao lado de um carregamento de mandioca. “Ela gosta de ficar olhando, por isso veio”, justificou, com olhar cabisbaixo.

Pronta, a farinha se transforma em delícias da culinária regional: beiju, tapi oca, pé-de-moleque, bolos, entre outras. “Ela rende muita coisa pra gente”, resume a agricultora Maria Margarida Barros, 45 anos, que ajuda a coar a mandioca. Além do consumo interno, o produto é vendido para fora. Para isso, foi montada até a Associação de Produtores Rurais do Engenho Roncador. Por dia, eles chegam a fabricar até 10 sacos de farinha, de 50 quilos cada. O saco é comercializado por R$ 18. Pouco rendimento para um trabalho tão cansativo. “Mal dá pra nos sustentar. Plantamos uns pezinhos de banana, de cana, e aí a gentevai vivendo”, conta Cícero Antônio, pai de oito filhos. Com 57 anos de vida, 40 deles dedicados à roça, ele diz que nunca deixará o antigo engenho: “Vi muitos amigos partirem para o Rio e São Paulo. Quis ficar. Tudo o que sei está aqui”.

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