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Eia! Sus! Avante!

Vistas as coisas com os olhos de alguns anos atrás (passemos por alto as profundezas da crise de 2005), há um aspecto notável nas avaliações correntes do quadro político-econômico brasileiro. Ele pode ser resumido na observação de que o que o establishment cobra do governo Lula é… ousadia e ambição!

Claro, também a esquerda e certos setores do PT cobram ousadia – outras ousadias de que Lula abriu mão. Mas não admira que a oposição esteja em crise quando o portal do próprio PFL (já devidamente transfigurado em “Democratas”) reproduz coluna de Suely Caldas no jornal “O Estado de São Paulo” em que, um pouco na esteira de matéria recente de “The Economist”, citado explicitamente, a autora não pode deixar de elogiar os vários aspectos bem-sucedidos da política econômica do governo (estabilidade econômica, inflação controlada, queda consistente dos juros – com a curiosidade de não registrar, ao contrário de “The Economist”, a inédita, embora incipiente, queda da desigualdade de renda). A grande ressalva, ao lado da denúncia da má qualidade dos gastos públicos e da incapacidade gerencial de alguns ministérios, está no fato de Lula parecer “inclinado ao feijão-com-arroz”. Cabe estimulá-lo, pois, a fazer o que falta (reformas tributária, trabalhista, previdenciária, política, judiciária…) para atrair investimentos privados em infra-estrutura e assegurar dinamismo à economia. Mas não se vê com clareza o que é mesmo o feijão-com-arroz apontado com ânimo negativo: estará ele desligado da estabilidade econômica e dos demais aspectos positivos? E, afinal, o noticiário recente tem mostrado os investimentos de fato em crescimento acelerado, a construção em expansão, as perspectivas em torno do etanol…

Alcançar reformas com a política possível

Debate de economistas na televisão, com a participação, entre outros, de Luís Paulo Rosenberg e transmitido em 14 de abril corrente pela GloboNews, converge amplamente na avaliação e nos matizes, acrescentando uma dimensão: a questão da viabilidade política das medidas que o governo venha a tomar é desqualificada como irrelevante, ou como algo que, se se refere a obstáculos reais, não é senão a evidência de incompetência dos políticos. A desqualificação expressa de novo a propensão vulgarmente exibida pelos economistas a ver a política como o espaço da irracionalidade e da corrupção, a serem neutralizadas por racionais decisões técnicas adotadas e colocadas em prática a tempo e a hora – e, naturalmente, abrindo espaço para o “espírito animal” dos empresários, movidos por interesses legítimos e bem-vindos.

Não há dúvida quanto ao acerto básico da incitação à ação pró-reformas. Um pouco de sociologia política, porém, faria bem ao debate, permitindo ressaltar algumas observações cuja banalidade atroz não as torna menos essenciais como parte de um diagnóstico adequado das dificuldades. Para começar, se há viscosos e profundos fatores culturais e estruturais a responder pela notável aceleração do mais gritante traço negativo da atualidade brasileira, a violência e a criminalidade, esses mesmos fatores estão por detrás de muito mais. Eles são relevantes, por um lado, quanto à corrupção, a respeito da qual operações policiais recentes como Anaconda e Furacão trouxeram revelações talvez algo novas, evidenciando o entrelaçamento da criminalidade comum, de natureza socialmente mais “periférica”, com a corrupção de classe média e de “elite”. Mas são igualmente relevantes, por outro lado, quanto ao fato de que por tanto tempo se tenham mostrado precárias as próprias normas que deveriam regular a vida político-institucional do país e evitar a instabilidade que nos tem marcado. Vacilações presidenciais que resultem em quebra da hierarquia militar nos assustam, com boas razões; mas se é preciso também moralizar a vida parlamentar, a Justiça e até o Ministério Público, além de assegurar que não seja o mero apetite animal a presidir mesmo a vida privada, o desafio para o país é o de como que puxar-se pelos próprios cabelos. E haja liderança!

O problema está em que a produção de lideranças efetivas depende de um processo político que viesse a encontrar tradução apropriada em movimentos ou partidos capazes não só de contar com apoio eleitoral estável, mas também de ganhar consistência institucional e sustentar, por sua vez, a adesão governamental consistente e duradoura a um conjunto de políticas. Com a crise do PT e dos demais partidos de peso, contudo, estamos longe disso. Por outra parte, se o projeto de alguma clareza de que dispomos é por certo a proposta de reformas liberalizantes visando à integração mais apta do país na nova dinâmica econômica mundial, é indispensável reconhecer que seria preciso juntá-la, de alguma forma, com a busca das conquistas igualitárias da social-democracia. Mas essa junção, motivo de perplexidade e tensão pelo mundo afora, torna-se tanto mais complicada na peculiar precariedade das condições sociais brasileiras. Sem falar da dificuldade especial de encontrar apoio eleitoral para ela nessas condições, quando políticas “neoliberais” têm de ser abjuradas e o que ganha eleições são Bolsa Família e imagem popular – e por razões não só compreensíveis, mas que permitem mesmo ver com bons olhos a projeção político-eleitoral da desigualdade brasileira num fenômeno como o lulismo.

Assim, eia, sus, avante para o segundo governo Lula e para a marcha rumo às reformas, com as qualificações cabíveis. O diabo é que é preciso fazer política, e fazê-la com os recursos de bordo.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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