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Duas dúvidas convenientes

Viva a campanha de Al Gore contra o aquecimento global. Ninguém fica indiferente se assistir a alguma de suas chocantes conferências, ou ao premiado filme de Davis Guggenheim, cujo DVD (Paramount, R$ 40) merece promoção massiva, como as de vacinação. Mais: toda biblioteca deveria receber pelo menos um exemplar do instigante livro “Uma verdade inconveniente” (Ed. Manole, 2006). Afinal, o grande mérito dessas três peças é tornar acessíveis as evidências acumuladas nos impeditivos e indigestos relatórios do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC).

Ao mesmo tempo, nada disso deve impedir que se admita a existência de sérias controvérsias científicas sobre duas questões que Al Gore prefere fazer de conta que seriam “favas contadas”. Como não há nada pior para a propaganda do que alguma “sombra de dúvida”, a campanha só induz à crença de que já existam certezas absolutas sobre o grau da participação humana no aquecimento, e sobre o preço que deverá ser pago para combatê-lo.

Se comparado ao número de cientistas que validam a visão do IPCC, é diminuto o dos que consideram as causas naturais do aquecimento mais influentes que as provocadas pelas atividades humanas. Nem por isso todos os seus argumentos podem ser desqualificados, como mostra o documentário “The Great Global Warming Swindle”, lançado no início de março pelo canal 4 da televisão britânica (http://video.google.com/). Mesmo que no futuro venha a ficar inteiramente confirmado que a razão está com o IPCC, tal probabilidade não anula a atual controvérsia científica. Claro, é compreensível o temor de que essa dúvida sobre o grau da responsabilidade humana atrapalhe o processo de engajamento multilateral. Mas, se tiver êxito, a opção em curso de tentar “tapar o sol com a peneira” engendrará marcos institucionais equivocados, além de vulneráveis, como já ocorreu com o pioneiro Protocolo de Kyoto.

Também é ingenuidade supor que a significativa queda de resistência do governo Bush na recente reunião do G-8 resulte de algum tipo de reconhecimento tardio da gravidade dos alertas do IPCC. Para os dirigentes republicanos, assim como para boa parte dos democratas, a redução da dependência energética americana de fontes fósseis é antes de tudo uma questão de segurança nacional, não de altruísmo global. Ficarão mais inclinados a aceitar acordos internacionais para limitar emissões se os novos arranjos criarem mercados para as tecnologias que engendrem gradual descarbonização de sua matriz energética. E continuarão a brigar por regras que também gerem demanda por tais tecnologias nos emergentes mercados chineses, indianos, mexicanos, brasileiros etc. Daí a condição de só admitir acertos que também comprometam a semiperiferia.

A segunda dúvida crucial que permeia a construção das retóricas antiaquecimento recai sobre seu custo. Nunca existirá uma única resposta científica a tal pergunta, pois ela é inteiramente dependente da adoção de algum pressuposto ético sobre o conflito intergeracional, como discutido nesta coluna em 15/5. Além disso, ainda não existe modelo econômico capaz de estimar qual seria a distribuição setorial e geográfica dos custos de cada uma das opções políticas possíveis. O máximo que se consegue é comparar estimativas dos custos totais das diversas propostas em pauta.

No depoimento oral prestado ao Senado americano em Março de 2007, Al Gore propôs que em 2050 as emissões dos EUA não ultrapassem 10% de seu nível atual, mediante adoção de cortes crescentes a partir de um mínimo de 15% em 2010. Já no influente relatório feito para o governo britânico sob a coordenação de Sir Nicholas Stern (outubro 2006), assim como no último documento do IPCC (maio 2007), a proposta central é que em 2050 as emissões globais caiam para a metade do patamar de 1990. Simultaneamente pipocaram outros tipos de abordagem nos debates sobre o que poderia ser um acordo pós-Kyoto, que entrasse em vigor em 2012. E também existem no âmbito acadêmico sugestões ainda menos conhecidas sobre aquilo que seria uma política “ótima” sob o prisma da eficiência econômica.

Pois bem, a única equipe capaz de fazer razoáveis comparações de dezesseis opções já formuladas é constituída por pesquisadores da Universidade de Yale, sob a coordenação de William Nordhaus. Trabalham hoje com a quinta versão de um modelo extremamente complexo, que vem sendo aperfeiçoado desde 1974. Não se tem notícia de nada que possa ser comprável a esse DICE: “Dynamic Integrated Model of Climate Change and the Economy”. E quem examinar as mais recentes reflexões do coordenador, facilmente perceberá o altíssimo grau de incerteza embutido nessas estimativas sobre o custo do combate ao aquecimento global. Seu texto “The Challenge of Global Warming: Economic Models and Environmental Policy” (http://nordhaus.econ.yale.edu/recent_stuff.html) até arrisca conclusões, mas somente depois de enfatizar as inúmeras reservas que devem ser feitas a esse tipo de exercício. E seu principal conselho é que seja fortemente taxada cada nova tonelada de carbono emitida. Começando imediatamente com uma taxa de US$ 23,40 (ou US$ 6,40 por tonelada de CO2), que aumentasse gradualmente até US$ 85 em 2050 e US$ 205 em 2100. Vale lembrar que os créditos de carbono já chegam a custar US$ 30 por tonelada na Europa, mas a metade nos EUA.

Taxar emissões de carbono poderá ser a maneira mais efetiva de acelerar a adoção de inovações que substituam fontes fósseis, principalmente na produção de energia elétrica e em sistemas de transporte. Mas isso só será benéfico para o crescimento econômico quando as correspondentes tecnologias estiverem prontas para comercialização. Daí a imperiosa necessidade de ganhar tempo, o que torna extremamente convenientes as duas dúvidas omitidas pela bela campanha de Al Gore. Conveniências que permitem supor que os EUA poderão até passar à vanguarda no combate aos gases de efeito estufa assim que forem sendo viabilizados os usos de etanol celulósico e de hidrogênio, por exemplo.

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