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Crescimento chinês e ambientalismo nórdico

Em 2005, a Sadia procurava um lugar para erguer aquela que seria sua maior fábrica de alimentos no país. Para receber um investimento de 800 milhões de reais, a cidade escolhida deveria ter algumas características básicas. Além de ser um centro produtor de soja e milho, o município precisaria estar localizado perto de uma rodovia, ter água e energia elétrica em abundância, não produzir grãos em áreas de floresta e contar com um bom nível de governança municipal. Depois de analisar algumas opções, a Sadia tomou sua decisão: Lucas do Rio Verde, cidade situada 350 quilômetros ao norte de Cuiabá, às margens da rodovia BR-163, numa região de transição entre o cerrado e a Amazônia. Com 35 000 habitantes, Lucas, como a cidade é conhecida, destoa da maioria das demais produtoras de soja da região. Fundada em 1988 por agricultores sulistas, vindos sobretudo do Paraná e do Rio Grande do Sul, Lucas é hoje um dos melhores exemplos da pujança do agronegócio brasileiro. Responsável pela produção de 1% da soja do país, há quatro anos tem taxa de crescimento médio anual de cerca de 10%. Quem visita a cidade depara com ruas limpas e arborizadas, e ausência de favelas, mendigos e crianças de rua — cenário que contrasta com o lastimável estado da estrada vizinha. “Escolhemos Lucas para sediar a maior e mais moderna de nossas fábricas justamente porque percebemos que ali teríamos condição de garantir um crescimento sustentável”, diz Gilberto Tomazoni, presidente da Sadia.

Criar condições básicas para atrair empresas como a Sadia foi fundamental para que Lucas desse um passo para o projeto de se transformar na mais verde das cidades brasileiras. Em 2006, por meio de parcerias com a iniciativa privada e com a ONG americana The Nature Conservancy (TNC), a cidade lançou um projeto socioambiental que hoje a projeta como referência no Brasil e no exterior. Batizado de Lucas do Rio Verde Legal, o programa tem dois objetivos. O primeiro deles é recuperar as áreas de nascentes desmatadas irregularmente nas últimas décadas, cumprindo a lei federal que determina que cada fazendeiro mantenha a mata nativa em 35% da área de sua propriedade. O segundo, assegurar que a mão-de-obra empregada no município trabalhe de forma regular, em regime de carteira assinada. Lançar esse projeto não foi um ato de altruísmo, mas de puro pragmatismo. Em todo o mundo, o cerco a práticas ambientalmente incorretas ou simplesmente ilegais adotadas por alguns fazendeiros — trabalho escravo, desmatamento e queimadas, por exemplo — vem se fechando. Ao optar por políticas socialmente responsáveis, Lucas tenta garantir a própria sustentação de sua economia. “Quem não adotar práticas sustentáveis corre o risco de ser punido pelos consumidores asiáticos e europeus”, afirma o economista americano Peter Goldsmith, diretor do Centro Nacional de Pesquisa da Soja da Universidade do Illinois, nos Estados Unidos, e um dos maiores especialistas do mundo no assunto. Os produtores brasileiros já sentiram a pressão, que — justa ou injustamente, por razões éticas ou meramente econômicas — vem se intensificando. No começo de 2005, a ONG Greenpeace agraciou o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, com o sarcástico troféu “motosserra de ouro”, numa alusão ao desmatamento da floresta. Um ano depois, o porto da multinacional americana Cargill, em Santarém, seria fechado em outro protesto do Greenpeace.

PARA ESCAPAR DESSES PROBLEMAS, o prefeito da cidade, Marino José Franz, decidiu que era preciso adequar o município às novas exigências da sociedade. O primeiro passo foi se aliar à iniciativa privada. Membro da família controladora da Fiagril, localizada em Lucas e uma das maiores produtoras de soja e derivados do país, Franz buscou patrocínio da Sadia e da multinacional suíça de defensivos agrícolas Syngenta — além do apoio de sua própria empresa. Cada uma delas fez uma doação inicial de 115 000 reais. A medida seguinte foi convencer a TNC, que já atuava na região, a entrar no programa. A ONG designou uma equipe de cinco técnicos para ajudar no projeto — um investimento de quase 100 000 reais (o orçamento total chegou a quase 450 000 reais). Além de garantir o patrocínio, as empresas participantes integram um conselho consultivo que avalia o desempenho do programa e aprova novas metas. “Apoiar essa iniciativa não é caridade, mas um investimento na qualidade de nosso produto”, diz Tomazoni, da Sadia.

Arrecadados os recursos, chegou a hora de ir a campo. A prefeitura contratou a empresa paranaese Senografia, especializada em mapeamento por satélite, para radiografar cada palmo dos 3 600 quilômetros quadrados do município, revelando as áreas a ser reflorestadas. O trabalho mostrou que seria necessário reflorestar 2 000 hectares de área de preservação permanente em 408 propriedades — cerca de 60% do número de fazendas de Lucas do Rio Verde. Grande parte desse legado era resultado das antigas técnicas de ocupação usadas na região na década de 80. Os produtores locais lembram que no início do desbravamento das terras eles cumpriam ordens do Exército, que trazia colonos sulistas para ocupar o Centro-Oeste e a Amazônia. “A orientação dos coronéis era desmatar usando dois tratores ligados por correntes”, diz o gaúcho Helmute Klawisch, produtor de soja na região há mais de duas décadas.

Com os dados do mapeamento na mão, a etapa seguinte foi começar a convencer os cerca de 370 proprietários das 670 fazendas do município a reflorestar as áreas de nascentes e manter as lavouras a uma distância mínima de 100 metros dos mananciais — tarefa que vem sendo coordenada por Luciane Copetti, secretária municipal de Agricultura e Meio Ambiente, e pelo agrônomo Giovanni Mallmann, chefe do escritório da TNC em Lucas. Desde o começo de 2007, ambos já deram mais de 1 000 telefonemas para os fazendeiros e fizeram dezenas de visitas às propriedades da região. De saída, enfrentaram a desconfiança de boa parte dos fazendeiros. “Nossa estratégia era nunca adotar uma atitude de confronto”, diz Mallmann. “Muitas vezes o proprietário nem sabia que estava em situação irregular.” Dono de 1 000 hectares, o produtor de soja Clóvis Cortezia custou a comprar a idéia do projeto. “Tem muita ONG baderneira por aí, e eu não ia acreditar numa coisa só porque tem a palavra legal no nome”, diz ele. Foi só depois de ver as imagens por satélite de sua propriedade e de ser informado sobre os benefícios que o reflorestamento traria para a preservação dos mananciais que Cortezia aderiu. Nos últimos meses, graças aos orientadores do projeto, ele replantou 6 200 mudas de árvores nativas, como ipê, pequi e sucupira — algo que jamais havia feito antes.

Paralelamente, no início de 2007, uma equipe da Secretaria de Desenvolvimento Social de Lucas do Rio Verde começou a percorrer o município para fiscalizar a situação trabalhista rural. “Não encontramos ninguém em situação irregular entre os 2 040 lavradores”, diz Marli Martins da Luz, secretária do Desenvolvimento Social do município. A notícia foi comemorada por duas razões. A primeira, porque mostra que a parceria entre a iniciativa privada e o governo está funcionando. A outra, porque o levantamento serve de atestado de que os produtores da cidade seguem boas práticas trabalhistas — o que facilita as negociações com clientes estrangeiros.

Nos próximos anos, o sucesso do programa será realmente colocado à prova. Hoje, a cidade tem oito postos de saúde e 11 escolas públicas novas, capazes de atender mais de 6 000 alunos. Com o apoio do governo federal, a prefeitura constrói atualmente 2 000 casas populares — volume que, por enquanto, atende às necessidades dos moradores. O problema é que o agronegócio está fazendo Lucas crescer rapidamente — e não será fácil garantir que todas as benfeitorias da cidade, tanto no campo como na área urbana, se multipliquem na mesma velocidade. Até 2009, quando ficarão prontas todas as obras que vão construir o maior complexo agroindustrial brasileiro, o PIB de Lucas deverá dobrar de tamanho, atingindo 2 bilhões de reais. Alguns desses novos empreendimentos já começam a entrar em operação. Recentemente, foi inaugurada uma fábrica de biodiesel com capacidade inicial de produzir 50 milhões de litros por ano, numa parceria da Fiagril com o grupo alemão Westfalia. Em abril, o grupo Amaggi, da família do governador Blairo Maggi, finaliza uma usina de 130 milhões de reais, que deverá esmagar 1 milhão de toneladas de soja por ano.

O projeto de Lucas está estimulando outros municípios a trilhar o mesmo caminho. Com a ajuda da Syngenta, a cidade de Catalão, em Goiás, já estuda adotar o modelo. No norte de Mato Grosso, 13 municípios acertam os detalhes para fechar um ambicioso pacto ambiental, que pretende criar incentivos financeiros para a preservação de florestas — um projeto inédito em todo o mundo. “O sucesso de Lucas é um exemplo a ser seguido não apenas no Brasil mas também pelos produtores de soja do Paraguai, do Uruguai e da Argentina”, afirma o economista Goldsmith, que já visitou Mato Grosso em duas ocasiões. “A grande maioria dos produtores desses países sabe como plantar e colher grãos, mas tem uma grande lição de casa à frente, seja no campo ambiental, seja no trabalhista.”

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