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Bush não disse o que queríamos ouvir

No 200º aniversário da Revolução Francesa, Chu En-lai disse que ainda era cedo para que se fizesse dela uma avaliação definitiva. Não corro o mesmo risco ao fazer um balanço quase instantâneo da visita do presidente Bush ao Brasil. Suas externalidades importaram mais do que o seu conteúdo. Falou-se do aparato de segurança, falou-se do show paralelo montado por Hugo Chávez, registraram-se as manifestações – aqui e em outros países da região – de oposição à presença do presidente norte-americano. Falou-se bem menos do visitante e do pouco que ele tinha a nos dizer. Talvez não se façam mais líderes como antigamente ou talvez – e mais provavelmente – os tempos atuais não reclamem grandes homens. Longe vai o Plano Marshall, os 14 pontos de Wilson, a política da boa vizinhança de Roosevelt, a doutrina Truman, a Aliança para o Progresso de Kennedy e outros estandartes que Washington, em diferentes momentos, desfraldou. Não ficará de Bush no Brasil nem memória perdurável nem avenida, rua, praça, vila ou rio (ou mesmo um simples edifício de apartamentos) com seu nome. Nesta que foi, provavelmente, sua última visita ao Brasil, já que o tempo que lhe resta é pouco, o único tema que merecia a rotulação de novo e de interessante era como o programa brasileiro de etanol poderia vir a representar um papel maior no mercado americano e transformar-se em um fator de importância na política energética mundial. Nesse caso também, Bush não tinha nem o poder nem a intenção de dizer o que queríamos ouvir: que os Estados Unidos protegerão bem menos o seu milho e facilitarão a entrada dos derivados da nossa cana naquele imenso mercado. O atual presidente americano não tem, acredito, condições de desafiar o lobby agrícola de seu país e, a cada mês, com a aproximação das eleições que escolherão o seu sucessor, poderá menos. Mas houve e deve continuar a haver avanço neste terreno porque os interesses nossos e os deles abrem espaços para acomodações que convêm a ambos. Temos de nosso lado não pouco o que comemorar. Não estamos, felizmente, no alto da agenda americana para a América Latina, que é essencialmente negativa: drogas, imigração clandestina, violações de direitos humanos e ameaça ambiental. Como não temos poder para construir uma agenda positiva com Washington é melhor estar, assim, onde estamos e ir desenvolvendo por vias pragmáticas uma relação que vai se tornando, pela própria natureza das coisas, mais densa e diversificada e, o que importa ainda mais, reciprocamente respeitosa. Faz bem o Brasil em não servir como um instrumento dos interesses da política dos Estados Unidos na região. Temos uma vizinhança imediata muitas vezes turbulenta e insensata e não nos convém tirar do fogo outras castanhas que não as nossas. Falamos, durante a visita, bastante em comércio internacional e ao Brasil importa muito desbloquear a Rodada de Doha. Nossos interesses favorecem um multilateralismo eficaz e podemos atuar junto aos norte-americanos, aos europeus e aos principais asiáticos, de maneira firme e construtiva. Por não pouca virtude nossa e ainda pelo desmando dos vizinhos, somos hoje um país percebido como sensato e prudente em sua ação internacional e que reúne já as qualidades para ser chamado a integrar os diretórios decisivos e os círculos mais íntimos do poder internacional. Penso menos em uma problemática presença permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e mais em um G-8 ampliado e em uma participação plena na OCDE. Foi bom que Bush não tivesse massageado nosso ego com frases e fórmulas sedutoras (Nixon e Kissinger foram perigosas sereias) porque ao Brasil não convém que as nossas credenciais apareçam como um reconhecimento externo antes do que expressão de um longo e persistente amadurecimento interno. Talvez das muitas visitas presidenciais americanas ao Brasil esta tenha sido uma das menos retumbantes e, quem sabe, talvez uma das mais úteis. Deu-se quando a hegemonia norte-americana está sendo desafiada, prenúncio de que, abandonada a hubris unilateralista, o realismo e o bom senso poderão voltar à Casa Branca. Acredito que a visita terá ajudado Washington a reconhecer que o Brasil é um dos pilares necessários à construção de uma ordem internacional multipolar, globalizada e estável. Para nós serviu para lembrar que no futuro previsível – e mesmo em seus piores momentos – os Estados Unidos continuarão a ser a superpotência que ocupa um patamar exclusivo na hierarquia do poder mundial. Se foi assim a viagem terá valido, para os dois lados, a pena e os gastos.

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