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Brasil agora espera colher frutos da vitória sobre a UE

Um livro que contasse a história do agribusiness no mundo teria de reservar uma passagem de destaque para o Brasil ao relatar os acontecimentos de 2004. Este foi o ano em que o país saiu vencedor em dois contenciosos na Organização Mundial do Comércio (OMC) que colocaram em xeque os subsídios das nações ricas: o do algodão, contra os Estados Unidos, e o do açúcar, contra a União Européia (UE). Nessas conquistas, a vitória do açúcar tem um mérito especial. A firme perspectiva de êxito brasileiro fez com que os europeus se antecipassem à decisão oficial e concordassem, na reunião da Rodada de Doha, com a eliminação dos subsídios às exportações.

“O caso do açúcar foi uma espécie de pá de cal, a última paulada na persistência do protecionismo, a medida que faltava para acelerar as mudanças que virão”, na opinião do diretor da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag) e da Usina Alto Alegre, Luiz Carlos Correa Carvalho. Para André Nassar, diretor-executivo do Instituto de Estudos de Comércio e Negociações Internacionais (Icone), a batalha também revelou a maturidade do Brasil no cenário mundial. “Como um grande player, passa agora a ser um influenciador da política agrícola internacional”, afirma.

Nassar ressalta ainda o aspecto cultural do contencioso, o rompimento de um sistema adotado ainda nos anos 50 por uma Europa que, traumatizada pela guerra, encontrou na proteção de seus produtores uma medida de precaução contra um eventual risco de desabastecimento e um meio de se fortalecer economicamente. Outro mérito da conquista, apontado pelo presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Minas Gerais, Gilman Viana Rodrigues, foi a qualidade da argumentação brasileira. “Não foi um discurso, mas uma sentença. A questão foi tratada de maneira técnica e não passional”, diz.

Os argumentos contra os subsídios europeus surgiram a partir da percepção de uma nota de rodapé em uma lista de concessões da Comunidade Européia, apresentada ainda na Rodada Uruguai, por volta de 1996. Na época, Elisabete Serodio, consultora da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), notou que o trecho feria o Acordo sobre Agricultura da OMC. O texto liberava a União Européia de computar em suas obrigações os recursos de subsídio que usava para reexportar o açúcar de suas antigas colônias, os países ACP (África, Caribe e Pacífico). O Brasil contestou, alegando que o Acordo da OMC, que obrigava a contabilizar os subsídios, valia mais que uma nota de rodapé.

A outra queixa do Brasil no panel da OMC envolve o chamado “açúcar C”. Na Europa, o setor tem o regime de cota A, de preço muito alto; cota B, preço um pouco mais baixo; e açúcar C, com preço de mercado internacional. A UE obriga que seja exportado o açúcar C. O que o Brasil conseguiu comprovar foi que o açúcar C recebia um subsídio cruzado, fruto dos altos preços das cotas A e B. “O fato de existirem cotas A e B de preços altíssimos é que viabilizava a produção do açúcar C”, explica Pedro de Camargo Neto, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs). Ele era secretário de produção e comercialização do Ministério da Agricultura quando o Brasil começou a questionar o regime europeu. Camargo Neto foi quem encampou a questão levantada por Elisabete Serodio, iniciando o processo dentro do governo, com o Itamaraty.

O questionamento formal foi apresentado à OMC pelo Brasil, a Austrália e a Tailândia em setembro de 2002. Naquele momento, o subsídio cruzado nunca havia sido testado na OMC. “Existia muita controvérsia porque eram subsídios considerados domésticos, não tinham relação direta com a exportação. Mas no decorrer do processo os Estados Unidos venceram uma disputa de argumentação parecida contra a produção canadense de leite, o que abriu um precedente para o açúcar”, diz o ministro Roberto Azevedo, coordenador-geral de contenciosos do Ministério das Relações Exteriores.

A UE decidiu recorrer da decisão da OMC, anunciada em agosto, mas é muito improvável que venha a ganhar. “O que existe agora é uma coincidência de interesses. A nova União Européia de 25 países dificilmente teria condições de manter o regime do açúcar porque o custo com subsídios é muito elevado”, afirma Júlio Maria Borges, diretor da empresa de consultoria Job Economia e Planejamento.

Empresas que forem prejudicadas podem investir no mercado brasileiro

É nesse contexto que a vitória do açúcar contribuiu para a adesão da UE ao acordo sobre a eliminação dos subsídios à exportação, na última reunião da Rodada de Doha, em julho. “A vitória do Brasil acabou representando a desculpa que os europeus precisavam para reformar uma política ultrapassada, que não tinha mais sustentação e teria de ser alterada mesmo”, diz Camargo Neto. Para Borges, os europeus só resolveram apelar porque diante de seus produtores seria politicamente desastroso acatar passivamente a decisão.

Além de recorrer no açúcar, a União Européia poderá contra-atacar questionando o Proálcool na OMC. Nassar diz que volta e meia surgem críticas ao programa lançado nos anos 70, sob a alegação de que a competitividade do Brasil só existe por causa dos estímulos federais concedidos naquela época. No entanto, diz ele, de lá para cá as usinas passaram por reformas, as destilarias foram renovadas, e tudo foi feito com recursos privados. Camargo Neto diz que não há a menor chance de os europeus obterem sucesso porque não há subsídio para o álcool.

Se for confirmada a decisão favorável ao Brasil na OMC, a Comunidade Européia terá praticamente de sair do mercado internacional de açúcar, deixando para trás um comércio de cerca de 3,7 milhões a 4 milhões de toneladas anuais, do qual o Brasil, maior produtor e exportador de açúcar do mundo, é o mais capacitado a ser herdeiro. Nas estimativas do ministro Azevedo, o país deverá ficar com 30% do total. “Ao menos num primeiro momento, o Brasil será o principal beneficiado com a decisão”, diz Elisabete Serodio. Segundo ela, estimativas do setor açucareiro indicam que o excesso de subsídios europeus ao produto causa um prejuízo anual de cerca de US$ 400 milhões para o Brasil.

A abertura desse mercado, aliada ao crescimento que a demanda por etanol deve apresentar nos próximos anos, vai exigir uma expansão substancial do setor. “Ainda temos um grande espaço para aumentar a produção e novos investimentos vêm sendo feitos para ampliar ainda mais a nossa capacidade de fornecimento”, diz Carvalho, da Abag. Segundo ele, o país está preparado para suprir o aumento da demanda.

Na esfera do comércio mundial, o açúcar está tão consolidado que não preocupa o Departamento de Promoção Comercial do Ministério das Relações Exteriores. “O açúcar tem uma demanda firme e canais de distribuição mais delineados no exterior. O grande desafio do Brasil hoje é fazer do etanol uma commodity internacional, contribuindo para o aumento de fornecedores e gerando confiança no mercado”, diz o diretor do departamento, Mario Vilalva.

A decisão da OMC já começou a provocar mudanças no setor de açúcar do Brasil, mas é muito difícil dimensionar esse movimento. “Existe uma demanda firme da China e há também a excelente perspectiva para o etanol, então é impossível calcular isoladamente o efeito da vitória do açúcar no planejamento das usinas. Só se sabe que tem um impacto importante”, diz Rodrigues. Na Europa, a perspectiva de reforma na Política Agrícola Comum e o êxito na OMC estão forçando grandes companhias a rever seus projetos.

No dia em que foi anunciada a derrota da UE na OMC as ações da maior produtora européia de açúcar, a alemã Sudzucker, caíram de 15,25 euros para 15,02. Outra empresa, a Danisco, comunicou que a renda do açúcar para a companhia seria reduzida em 25% e a British Food, dona da British Sugar, decidiu vender algumas de suas fábricas de açúcar. Uma das tendências é que muitas dessas empresas recorram justamente ao Brasil, comprando usinas nacionais ou instalando unidades no país.

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