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Reforma tributária e vetos ao Fiagro 

Fábio Calcini, sócio tributarista do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, analisa vetos de lei complementar ao Fiagro

Reforma tributária e vetos ao Fiagro 
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Fábio Pallaretti Calcini* 

1. Fiagro: aspectos gerais e importância

Como é de conhecimento, tivemos, por meio da Lei nº 14.130/2021, a aprovação do Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), sendo um condomínio de natureza especial que configura uma comunhão de recursos destinados à aplicação de ativos financeiros, bens e direitos notadamente relacionados ao setor do agronegócio [1]

Trata-se de um importante instrumento de financiamento privado do segmento do agronegócio, além de alternativa de investimento pela sociedade em geral em referido setor. 

Em geral, referido fundo pode ser composto de diversos tipos de ativos (artigo 20A, Lei nº 8.668/93 [2]), em especial, imóveis rurais, participação em sociedades que explorem atividades da cadeia produtiva agroindustrial, ativos financeiros, títulos de crédito ou valores mobiliários, direitos creditórios, cotas de fundos de investimentos, todos que tenham relação com a cadeia do agronegócio

Houve, inclusive, recente regulamentação da CVM, por meio da Resolução nº 214, de 30 de setembro de 2024, contendo regras específicas a respeito de referido fundo. 

Sob o ponto de vista fiscal, no caso do Fiagro, tem-se os parâmetros gerais dos demais fundos, ou seja, onde a tributação de ganhos e rendimentos ocorrem somente na realização pelos cotistas, partir da distribuição a estes ou mesmo na alienação ou resgate de cotas (artigo 20-C [3] e 20-D [4], da Lei nº 8.668/93). Com isso, enquanto os ganhos e rendimentos se mantiverem no fundo sem tais realizações, inexiste tributação, mesmo que pelo sistema de cotas. 

Mais do que isso, há previsão de regras específicas, tal como o diferimento do ganho de capital na integralização de imóvel rural (artigo 20-E [5]) ou mesmo isenção do imposto sobre a renda, desde que cumprida certas condições (artigo 3º, da Lei nº 11.033/2004 [6]).  

2. Reforma tributária e os vetos na Lei Complementar nº 214/2024 ao Fiagro

Houve a aprovação da reforma tributária, nos termos da Emenda Constitucional nº 132/2023, instituindo novos tributos sobre o consumo – IBS/CBS – em substituição, principalmente, ao ICMS, ISS e PIS/Cofins.  

Com isso, tivemos a aprovação da respectiva regulamentação, por meio da Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Houve, no entanto, o veto de alguns dispositivos relacionados à regulamentação, os quais tinham por objeto exatamente o Fiagro, cabendo destacar os V, §§ 5º e 6º, do artigo 26 do Projeto de Lei Complementar nº 68 (convertido na LC 214/25):  

“V – fundos de investimento, observado o disposto nos §§ 5º a 8º deste artigo;” §5º Os Fundos de Investimento Imobiliário (FII) e os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (Fiagro) de que trata a Lei nº 8.668, de 25 de junho de 1993, que realizem operações com bens imóveis são contribuintes do IBS e da CBS no regime regular caso:

I – não obedeçam às regras previstas para a isenção do imposto de renda sobre os rendimentos recebidos pelos cotistas, constantes do inciso III do caput e dos §§ 1º a 4º do art. 3º da Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004; ou II – estejam sujeitos à tributação aplicável às pessoas jurídicas, nos termos do art. 2º da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999 

“§ 6º Não são contribuintes do IBS e da CBS no regime regular os FII e os Fiagro cujas cotas sejam detidas, em mais de 95% (noventa e cinco por cento), por: I – FII ou Fiagro que não seja contribuinte do IBS e da CBS; II – fundo de investimento constituído e destinado, exclusivamente, para acolher recursos de planos de benefícios de previdência complementar e de planos de seguros de pessoas, regulados e fiscalizados pelos órgãos governamentais competentes; e III – entidades de previdência e fundos de pensão no País, regulados e fiscalizados pelos órgãos governamentais competentes.”  

Equivale dizer: previa o artigo 26, V, que os fundos de investimento, observado os §§ 5º a 8º, da Lei Complementar nº 214/25, não seriam contribuintes de IBS e CBS. 

Para a hipótese de Fiagro, quanto às operações com imóveis, este seria contribuinte de tais tributos se não cumprisse as regras de isenção prevista no artigo 3º, da Lei nº 11.033/2004 ou estivesse submetido à tributação aplicável às pessoas jurídicas, nos termos do artigo 2º da Lei nº 9.779/99. 

Por sua vez, previa o § 6º, do artigo 26 do Projeto de Lei Complementar, que não seriam contribuintes do IBS/CBS no regime regular o Fiagro cujas cotas fossem detidas, em mais de 95% (noventa e cinco por cento) por Fiagro que não seja contribuinte ou fundo de investimento constituído e destinado, exclusivamente, para acolher recursos de planos de benefícios de previdência complementar e de planos de seguros de pessoas, regulados e fiscalizados pelos órgãos governamentais competentes, bem como  entidades de previdência e fundos de pensão no país, regulados e fiscalizados pelos órgãos governamentais competentes.  

Segundo exposição de motivos do veto, as razões seriam:  

“Em que pese a boa intenção do legislador, não há autorização constitucional para que os fundos de investimentos e os fundos patrimoniais não sejam considerados contribuintes do Imposto sobre Bens e Serviços —IBS e da Contribuição Social sobre Bens e Serviços — CBS. Ao concederem benefícios financeiros ou fiscais em hipóteses não previstas na Constituição, os dispositivos incorrem em violação aos art. 156-A, §1º, X, combinado com o art. 195, § 16, da Constituição.  

Em face, assim, dos vícios de inconstitucionalidade existentes nos incisos V e X do caput, no inciso III do § 1º, e nos § 5º e § 6º todos do art. 26, o § 8º do art. 26 e o § 4º do art. 183 devem ser vetados por arrastamento.”  

Ouvido, o Ministério da Fazenda manifestou-se pelo veto ao seguinte dispositivo do Projeto de Lei Complementar”. 

A justificativa, portanto, se dá por vicio de inconstitucionalidade, uma vez que não haveria autorização constitucional para os fundos não serem contribuintes de IBS e CBS, levando, ainda, por arrastamento, outros dispositivos dependentes da previsão estabelecida. 

3. Críticas e equívocos quanto ao veto   

A primeira observação a título de crítica se dá no sentido de confirmar o fato de que a presente reforma tributária não veio em vão, mas com um nítido propósito de ampliar as hipóteses de tributação sobre o consumo, e, por conseguinte, gerar aumento de carga tributária.  

Ao se vetar a previsão de que os fundos de investimento, típicos condomínios especiais sem personalidade jurídica, não sejam contribuintes do IBS/CBS, torna toda a operação com os ativos — bens e direitos que compõe tais entidades — sujeita a tais contribuições, diferente do que ocorre, atualmente, uma vez que não há incidência de PIS/Cofins, ISS ou ICMS.  

Neste aspecto, nos parece um equívoco técnico, uma vez que, dentro da lógica de tributação quanto aos fundos de investimento, por não terem personalidade jurídica, caberia eventual exigência de tributos dos cotistas (pessoas físicas ou jurídicas), quando da realização e a depender da espécie de operação. 

Além disso, quanto ao Fiagro, vale lembrar que este tem por objeto exatamente a cadeia do agronegócio, de tal sorte que, numa interpretação sistemática da Constituição Federal, é preciso lembrar que o artigo 187, I [7], estabelece expressamente a autorização constitucional para se ter incentivos de natureza fiscal oferecendo tratamento favorecido e diferenciado ao setor, a fim de que este seja fomentado e incentivado [8].  

Portanto, ao contrário do que afirmam as razões de veto no sentido de que haveria inconstitucionalidade por ausência de autorização constitucional, esta justificativa não se aplicaria ao setor do agronegócio, diante do que estabelece o artigo 187, da Constituição, que não deve ser interpretada isoladamente, ou “em tiras”, mas de forma unitária e sistêmica.

O regime de tributação do IBS/CBS não está isolado unicamente na Emenda 132/2023, devendo ser interpretado com todo o texto constitucional, sobretudo, dispositivos que constam desde o advento da Constituição e, por conseguinte, fruto de decisão do poder constituinte originário. 

Daí porque, nos parece plenamente possível, sob o ponto de vista constitucional, o tratamento tributário apresentado ao Fiagro, inexistindo inconstitucionalidade.  

De outro lado, caso prevaleça este tratamento tributário, nos parece que será preciso avaliar atentamente a natureza de cada operação ou fornecimento de bens, serviços e direitos para se reconhecer o efeito fiscal a título de IBS/CBS, sem deixar, ainda, de se atentar ao fato de que o artigo 6º, da Lei Complementar n. 214/25, prevê hipóteses de não incidência, podendo destacar para a questão em debate:

  • (i) – baixa, liquidação e transmissão, incluindo alienação, de participação societária;
  • (ii) – rendimentos financeiros;
  • (iv) – recebimento de dividendos e de juros sobre capital próprio;
  • (v) – demais operações com títulos ou valores mobiliários.  

Os vetos, portanto, além de gerar maior complexidade e insegurança jurídica, em contraposição aos propósitos da reforma tributária, poderá ocasionar, salvo hipóteses de não incidência, a exigência do IBS/CBS com aumento da carga tributária, tornando tais instrumentos de investimento e financiamento privado menos atraentes e eficientes para a economia e setor produtivo do país, em especial, o agronegócio. 

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[1] Sobre o tema: CALCINI, Fabio Pallaretti. BURANELLO, Renato. Fiagro: relevância e necessidade de tratamento específico. CONJUR https://www.conjur.com.br/2021-mar-26/direito-agronegocio-fiagro-relevancia-necessidade-tratamento-fiscal-especifico/ ; CALCINI, Fabio Pallaretti. Aspectos fiscais do Fiagro-Imobiliário. ConJur https://www.conjur.com.br/2024-mai-24/os-aspectos-fiscais-do-fiagro-imobiliario/#_ftn6 

[2] “Art. 20-A.  Ficam instituídos os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (Fiagro), a serem constituídos sob a forma de condomínio de natureza especial destinado à aplicação, isolada ou conjuntamente, em: (Redação dada pela Lei nº 14.421, de 2022) I – imóveis rurais; (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) II – participação em sociedades que explorem atividades integrantes da cadeia produtiva agroindustrial;  (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) II – participação em sociedades que explorem atividades integrantes da cadeia produtiva do agronegócio;   (Redação dada pela Lei nº 14.421, de 2022)III – ativos financeiros, títulos de crédito ou valores mobiliários emitidos por pessoas físicas e jurídicas que integrem a cadeia produtiva do agronegócio, na forma do regulamento;  (Redação dada pela Lei nº 14.421, de 2022); IV – direitos creditórios do agronegócio e títulos de securitização emitidos com lastro em direitos creditórios do agronegócio, inclusive certificados de recebíveis do agronegócio e cotas de fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados que apliquem mais de 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio nos referidos direitos creditórios;   (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021); V – direitos creditórios imobiliários relativos a imóveis rurais, ativos financeiros emitidos por pessoas físicas e jurídicas que integrem a cadeia produtiva do agronegócio e títulos de securitização emitidos com lastro nesses direitos creditórios ou nos ativos financeiros emitidos por pessoas físicas e jurídicas que integrem a cadeia produtiva do agronegócio, inclusive cédulas de produto rural físicas e financeiras, certificados de recebíveis do agronegócio e cotas de fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados que apliquem mais de 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio nos referidos direitos creditórios; (Redação dada pela Lei nº 14.421, de 2022); VI – cotas de fundos de investimento que apliquem mais de 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio nos ativos referidos nos incisos I, II, III, IV e V deste caput. (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021)”. 

[3] “Art. 20-C.  Os rendimentos e os ganhos de capital auferidos e distribuídos, quando distribuídos pelos Fiagro, sujeitam-se à incidência do imposto sobre a renda na fonte à alíquota de 20% (vinte por cento) (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021)”. 

[4] “Art. 20-D.  Os ganhos de capital e os rendimentos auferidos na alienação ou no resgate de cotas dos Fiagro sujeitam-se à incidência do imposto de renda à alíquota de 20% (vinte por cento): (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) I – na fonte, no caso de resgate; (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) II – às mesmas normas aplicáveis aos ganhos de capital ou aos ganhos líquidos auferidos em operações de renda variável, nos demais casos. (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021)”. 

[5] “Art. 20-E.  As cotas dos Fiagro podem ser integralizadas em bens e direitos, inclusive imóveis. (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) § 1º  O pagamento do imposto sobre a renda decorrente do ganho de capital sobre as cotas integralizadas com imóvel rural por pessoa física ou jurídica poderá ser diferido para a data definida para o momento da venda dessas cotas, ou por ocasião do seu resgate, no caso de liquidação dos fundos  (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) § 2º  Na alienação ou no resgate das cotas referidas no § 1º deste artigo, o imposto sobre a renda diferido será pago em proporção à quantidade de cotas vendidas. (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021) § 3º Os imóveis rurais destinados à integralização de cotas dos Fiagro deverão ser previamente avaliados por profissional ou por empresa especializada, nos termos de regulamento. (Incluído pela Lei nº 14.130, de 2021)” 

[6] “Art. 3º Ficam isentos do imposto de renda:  (…) III – na fonte e na declaração de ajuste anual das pessoas físicas, os rendimentos distribuídos pelos Fundos de Investimento Imobiliário e pelos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro) cujas cotas sejam admitidas à negociação exclusivamente em bolsas de valores ou no mercado de balcão organizado;  (Redação dada pela Lei nº 14.130, de 2021) IV – na fonte e na declaração de ajuste anual das pessoas físicas, a remuneração produzida por Certificado de Depósito Agropecuário – CDA, Warrant Agropecuário – WA, Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, Letra de Crédito do Agronegócio – LCA e Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, instituídos pelos arts. 1º 23 da Lei nº 11.076, de 30 de dezembro de 2004 ;  (Incluído pela Lei nº 11.311, de 2006); V – na fonte e na declaração de ajuste anual das pessoas físicas, a remuneração produzida pela Cédula de Produto Rural – CPR, com liquidação financeira, instituída pela Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, alterada pela Lei nº 10.200, de 14 de fevereiro de 2001, desde que negociada no mercado financeiro.     (Incluído pela Lei nº 11.311, de 2006). (…) § 1º O benefício disposto no inciso III do caput deste artigo:  I – será concedido somente nos casos em que os Fundos de Investimento Imobiliário ou os Fiagro possuam, no mínimo, 100 (cem) cotistas;    (Redação dada pela Lei nº 14.754, de 2023);  II – não será concedido ao cotista pessoa física titular de cotas que representem 10% (dez por cento) ou mais da totalidade das cotas emitidas pelo Fundo de Investimento Imobiliário ou pelos Fiagro, ou ainda cujas cotas lhe derem direito ao recebimento de rendimento superior a 10% (dez por cento) do total de rendimentos auferidos pelo fundo.  (Redação dada pela Lei nº 14.130, de 2021); III – não será concedido ao conjunto de cotistas pessoas físicas ligadas, definidas na forma da alínea “a” do inciso I do parágrafo único do art. 2º da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, titulares de cotas que representem 30% (trinta por cento) ou mais da totalidade das cotas emitidas pelos Fundos de Investimento Imobiliário ou pelos Fiagro, ou ainda cujas cotas lhes derem direito ao recebimento de rendimento superior a 30% (trinta por cento) do total de rendimentos auferidos pelo fundo. (Incluído pela Lei nº 14.754, de 2023)”. 

[7] “Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: I – os instrumentos creditícios e fiscais;”. 

[8] CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação diferenciada no agronegócio não é privilegio. CONJUR.  https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio/[8] CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação diferenciada no agronegócio não é privilegio. CONJUR.  https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio/ 

* Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet e sócio tributarista do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia. 

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico