1. Reforma tributária sobre consumo e a sustentabilidade
Temos em nossa coluna elaborado diversos artigos a respeito da reforma tributária sobre o consumo, estatuída pela Emenda Constitucional 132/2023, levando em consideração os reflexos para o setor do agronegócio.
O enfoque principal esteve fundado no regime favorecido e diferenciado que há de ser dado ao setor, notadamente, diante de sua vocação primordial. Na produção de alimentos, que exerce papel essencial na existência dos seres humanos e da própria estabilidade das instituições democráticas, concretizando diversos direitos fundamentais (dignidade da pessoa humana, vida, alimentação, entre outros) [1].
Não podemos, no entanto, esquecer que o agronegócio não possui tão somente a produção de alimentos, sendo um importante representante na produção de energia limpa e sustentável, cabendo destacar os biocombustíveis (etanol, biodiesel, biometano, etc.) ou mesmo o mais recente combustível sustentável de aviação – sustainable aviation fuel (SAF).
Bem por isso, nos parece relevante trazer alguns apontamentos a respeito do encaminhamento que a reforma tributária pretende dar para este segmento relacionado ao agronegócio e suas operações.
2. A sustentabilidade como princípio norteador da reforma tributária
Na Emenda Constitucional nº 132/2023, notadamente, entre os valores que dão fundamento à reforma tributária do consumo, temos a sustentabilidade.
Isso porque, entre as alterações, identificamos a previsão no artigo 43, que cuida da atuação da União em regiões para desenvolvimento e reduções de desigualdades, que esta poderá promover incentivos regionais, como isenções, reduções ou diferimento de tributos federais, no entanto, sempre que possível “considerará critérios de sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono” (artigo 43, § 4º).
Quanto da atuação da União, mediante incentivos fiscais federais, a fim de desenvolver regiões ou reduzir desigualdades, a sustentabilidade será um critério relevante para a tomada de decisão e direcionamentos.
Seguindo por tais pilares, ao cuidar do Sistema Tributario Nacional, quanto aos princípios gerais, estabeleceu no artigo 145, § 3º, que ele deverá “observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente”. A tributação, portanto, no Brasil, reconhece, doravante, como princípio geral, a defesa do meio ambiente.
De outro lado, criou o Imposto Seletivo incidente sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar” (artigo 153, VIII, § 6º, CF).
Por fim, ajustando a redação aos tributos IBS e CBS, estabeleceu expressamente no art. 225, que trata do meio ambiente, a previsão no § 1º, incumbindo o Poder Público de “manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o artigo 195, I, ‘b’, IV e V, e o artigo 239 e aos impostos a que se referem os artigos 155, II, e 156-A” (artigo 225, § 1º, VIII).
Com referidas alterações, o texto constitucional reforçou, inclusive, em política fiscal tributária a importância de se levar em consideração a sustentabilidade, a fim de se resguardar o direito fundamental ao meio ambiente, sem, porém, impedir a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico e social.
É preciso observar, no entanto, a fim de que não se tenha interpretação equivocada e pautada pelo radicalismo ecológico, que as alterações promovidas visando à sustentabilidade em matéria tributária, vieram, em sua preponderância, no sentido de que o poder público deverá estabelecer regimes de tributação, inclusive, sobre o consumo, que fomente e incentive a atuação de setores econômicos e respectivas operações em geral, concretizando referida finalidade normativa.
Equivale dizer: o mote da proteção ao meio ambiente e sustentabilidade não autoriza, em regra, o Estado a criar ou aumentar tributos, mas, ao contrário, impõe a concessão de incentivos fiscais e regimes fiscais favorecidos e diferenciados. A única exceção, com limites constitucionais e legais, seria o Imposto Seletivo (IS), mas, que também não é a panaceia da competência constitucional de tributar da União.
Isto nos parece relevante afirmar a fim de que a sustentabilidade e meio ambiente não sejam, indevidamente, utilizamos como justificativa para aumento e criação de tributos, quando, em verdade, o direcionamento que estabelece a Constituição Federal, sobretudo, diante da Emenda Constitucional nº 132/2023 é exatamente o contrário.
3. Biocombustíveis e regime fiscal favorecido
Dentro desta perspectiva, portanto, o texto constitucional reconhece expressamente, no art. 225, § 1º, VIII, já citado, que deverá o poder público “manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o art. 195, I, “b”, IV e V, e o art. 239 e aos impostos a que se referem os arts. 155, II, e 156-A”.
A tributação, assim, do IBS e CBS, quanto aos biocombustíveis e para hidrogênio de baixa emissão de carbono, há de ser diferenciada e favorecida em comparação aos combustíveis fósseis. A diferenciação, no entanto, exige que seja capaz de garantir um diferencial competitivo, isto é, em comparação aos combustíveis fosseis, a tributação há de ser mais vantajosa a fim de que exista o cumprimento de tal pretensão normativa, que, como dito, caminha no sentido de concretizar a sustentabilidade e a proteção ao meio ambiente.
O setor de biocombustíveis e de hidrogênio teriam uma tributação com características de extrafiscalidade, uma vez que o propósito principal, diante deste regime favorecido, será fomentar e incentivar esta cadeia, capaz de, ao menos, ter um diferencial competitivo do ponto de vista de carga tributária.
Dizer que o diferencial competitivo é sob o enfoque da carga tributária é fundamental, pois, naturalmente, podemos encontrar no biocombustível outros elementos que o diferenciam e lhe trazem vantagens competitivas, que também poderão ser promovidas pelo poder público. Todavia, há imposição no texto constitucional para que a carga fiscal seja mitigada, em benefício da sustentabilidade, em comparação aos combustíveis fosseis.
4. O PLP 68/2023: alguns apontamentos
Como é de conhecimento, a regulamentação da reforma tributária se dará, principalmente, por meio de Leis Complementares, sendo o PLP 68/20023, um deles. Entre os regimes específicos do IBS e CBS do Título V, temos o Capítulo I, que trata dos combustíveis.
A legislação, em geral, dá tratamento de gênero à expressão combustíveis, uma vez em seu artigo 167, estabelece que as operações terão uma única incidência (monofasia), inclusive, para o etanol anidro combustível (EAC), biodiesel (B100), etanol hidratado combustível (EHC), biometano, bem como outros combustíveis definidos e autorizados pela ANP, o que nos permite, assim, já estender, por exemplo, para o combustível sustentável de aviação (SAF).
A base de cálculo será a quantidade de combustível objeto da operação (artigo 168), sendo que esta será aferida com a unidade de medida própria para cada tipo. Por sua vez, as alíquotas (artigo 169), serão uniformes em todo território nacional, específicas por unidade de medida e diferenciadas por produto, devendo toda majoração, por obvio, respeitar a anterioridade nonagesimal do artigo 150, da Constituição, e serão divulgadas pelo Comitê Gestor, caso do IBS, e, para CBS, pelo chefe do Poder Executivo da União.
Além de diversas regras e limitações da carga fiscal ao longo do período de transição entre o IBS e CBS, juntamente, com ICMS e PIS/Cofins (artigo 169), o texto do PLP 68 traz no artigo 170 a previsão relacionada ao tratamento favorecido do artigo 225, da Constituição, ao enunciar que:
“Art. 170. Nas alíquotas específicas por unidade de medida do IBS e da CBS, deverá ser garantido diferencial competitivo para os biocombustíveis consumidos na sua forma pura e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, assegurando-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, conforme critérios previstos na legislação, que permita a manutenção do diferencial estabelecido no inciso VIII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal. Parágrafo único. Ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e do chefe do Poder Executivo da União estabelecerá os mecanismos a ser utilizados com vistas a assegurar o diferencial competitivo previsto no caput deste artigo.”
Em verdade, esta previsão no PLP em nada inova o disposto no texto constitucional, reforçando somente a necessidade de regime diferenciado que garanta o diferencial competitivo do ponto de vista fiscal.
Pelo PLP caberá ao Poder Executivo da União e ao Comitê Gestar, em conjunto, estabelecer os mecanismos para assegurar este diferencial competitivo aos biocombustíveis.
Mais adiante, no entanto, traz direcionamentos quanto às operações com biodiesel (B100) e Etanol Anidro Combustível (EAC), estabelecendo no artigos 173 e 174 que:
“Art. 173. Fica atribuída à refinaria de petróleo ou suas bases, à CPQ, ao formulador de combustíveis e ao importador, relativamente ao percentual de biocombustível utilizado na mistura, nas operações com gasolina A, a responsabilidade pela retenção e pelo recolhimento do IBS e da CBS incidentes nas importações de EAC ou sobre as saídas do estabelecimento produtor de EAC.
Art. 174. Nas operações com EAC:
I – o adquirente de EAC destinado à mistura com gasolina A que realizar a saída dos biocombustíveis com destinação diversa fica obrigado a recolher o IBS e a CBS incidentes sobre o biocombustível;
II – a distribuidora de combustíveis que realizar mistura de EAC com gasolina A em percentual: a) superior ao obrigatório, fica obrigada a recolher o IBS e a CBS de que trata o art. 167 desta Lei Complementar em relação ao volume de biocombustível correspondente ao que exceder ao percentual obrigatório de mistura; e b) inferior ao obrigatório, terá direito ao ressarcimento do IBS e da CBS de que trata o art. 167 desta Lei Complementar em relação ao volume de biocombustível correspondente ao misturado a menor do que o percentual obrigatório de mistura.”
Portanto, possível notar que a política fiscal voltada à tributação dos biocombustíveis, garantindo um regime diferenciado e favorecido ainda depende do aperfeiçoamento, mediante inserção de critérios e diretrizes em referido projeto de lei complementar, além de posteriores atos do Comitê Gestor e do Poder Executivo.
Além da disciplina dos combustíveis, quanto ao PLP 68, interessante citar a adoção dos biocombustíveis para concessão de incentivos para o setor automotivo, como o caso do crédito presumido de CBS (artigo 308).
Importante lembrar que referido projeto de Lei Complementar deve se atentar não somente às operações em si de toda a cadeia, como a produção, distribuição, revenda e utilização dos biocombustíveis, mas, também, agir em harmonia com as políticas já existentes de fomento e incentivo destes produtos, com o caso do RenovaBio, previsto na Lei nº 13.576/2017, bem como a denominada “Lei dos Combustíveis do Futuro”, conforme Lei nº 14.993/2024, sob pena de já surgir desatualizada e incompatível com o regime diferenciado e favorecido que há de ser dado, por determinação constitucional, para tais combustíveis.
Estas são as ponderações iniciais para a cadeia dos biocombustíveis em sentido amplo.
*Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet e sócio tributarista do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.
Artigo originalmente publicado no Consultor Jurídico e autorizado pelo autor para publicação no JornalCana