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Do corte ao crédito de carbono: a jornada do produtor de cana no Brasil 

"Do Nordeste ao Centro/Sul, o papel do produtor de cana se mistura às raízes culturais da nação, remonta aos tempos coloniais, sendo reconhecido no debate institucional e econômico, ampliado no século XX", escreve Paulo Leal

Artigo exclusivo publicado na edição 358 da revista do JornalCana

No Brasil, o produtor de cana foi e continua sendo um personagem central (mas muitas vezes invisibilizado) na construção de um dos setores mais relevantes do agronegócio. Da lavoura manual ao crédito de carbono (CBios), a trajetória desses agricultores é marcada por transformações sociais, tecnológicas, fundiárias, inclusive legais, que refletem a própria evolução do país.

Do Nordeste ao Centro/Sul, o papel do produtor de cana se mistura às raízes culturais da nação, remonta aos tempos coloniais, sendo reconhecido no debate institucional e econômico, ampliado no século XX.

Neste contexto secular, mas exatamente há uns 100 anos, nos anos 1930, sob orientação da política de Getúlio Vargas, década em que é criado o Instituto Nacional do Açúcar e do Álcool (IAA), onde já existiam indústrias (usinas) oriundas dos engenhos, além dos tradicionais fornecedores de cana, é criado o Estatuto da Lavoura Canavieira, em 1941, com objetivo de estabelecer regras e normas para o setor, visando proteger os direitos dos fornecedores e lavradores.

Nascia, neste mesmo ano, a Federação dos Plantadores de Cana do Brasil (Feplana). E, desde então, destaca-se como eixo central da representação política e institucional dos produtores brasileiros independentes, estes que respondem por 30% da matéria-prima

processada pelas usinas e que representam majoritariamente os pequenos produtores rurais.

Marcos Legais e Modernização do Setor Canavieiro

Um outro marco legal se consolidava neste sentido, a Lei Federal 4.870 de 1965, que, juntamente com o Estatuto, regularam as relações entre produtores e usinas, estabelecendo critérios para preços, contratos e qualidade da cana entregue.

Contudo, com o processo de modernização e liberalização na economia e na política, houve mudanças na regulação estatal sobre o setor. Muitos artigos da Lei 4.870 foram extintos; outros tornaram-se obsoletos diante das transformações do setor. O fim do IAA, em 1990, foi um marco dessa virada.

Um ano após, também foi revogada a lei que fixava os preços do setor, iniciando a era da livre negociação pelo mercado, acelerando a modernização do setor e a busca pela maior eficiência na produção e comercialização do açúcar.

Em 1999, era criado o Conselho de Produtores de Cana de Açúcar, Açúcar e Etanol do Estado de São Paulo, sendo adaptado e adotado em mais estados. Instituiu o modelo de adoção voluntária por usinas e fornecedores, que permite, a partir da qualidade da cana e dos preços do açúcar e do etanol, definir um preço para a cana.

Daí por diante, o setor tem passado por transformações, com avanços tecnológicos, expansão territorial e novas configurações produtivas, com a mecanização da colheita, uso de variedades geneticamente melhoradas, manejo mais preciso e a informatização da produção transformaram o trabalho no campo.

Além disso, a cultura da cana se expandiu para além do tradicional cinturão do Sudeste e NE. E houve mudanças fundiárias e de escala, com crescimento no número de pequenos produtores. Em contrapartida, surgiram também os grandes.

RenovaBio e o Futuro Sustentável

O setor passa a ser protagonista de novo pelo seu potencial energético sustentável. A partir de 2017, com a Política Nacional de Biocombustíveis do Brasil (RenovaBio), posta na Lei 13.573.

O novo protagonismo com a sustentabilidade é prioridade do RenovaBio, materializado por meio do CBios – crédito econômico ambiental para o produtor de biocombustíveis devido à sua contribuição na redução das emissões de gases de efeito estufa através do uso e da produção dos biocombustíveis, inserindo uma nova lógica (mercado verde).

O País passa a reconhecer o papel estratégico dos biocombustíveis na matriz energética brasileira. E o fornecedor de cana ganha relevância neste novo cenário por ser um elo crucial na cadeia produtiva do setor sucroenergético.

O futuro do produtor de cana é promissor. Se no passado era uma figura secundária no processo industrial da cana, hoje encontra-se no centro de uma revolução tecnológica e ambiental. Entre drones, algoritmos e metas climáticas, sua função vai além do plantio.

Porém, as mesmas condições que levaram à regulamentação da atividade no passado, como o baixo valor agregado da cana e a dependência do produtor frente à indústria local, ainda colocam em xeque a autonomia de parte dos fornecedores de cana no país.

Estes e outros vários desafios persistem. Todavia, com as políticas públicas adequadas e com a organização da classe, o produtor de cana pode (e deve) continuar sendo um agente ativo do desenvolvimento rural e ambiental do Brasil.

Dentro de todo o contexto, reflete-se, portanto, a construção de um modelo institucional que, ao longo de décadas, observa-se a busca pelo equilíbrio da eficiência econômica, justiça contratual e inclusão social da canavicultura e de seus produtores. Não obstante, os canavicultores, especialmente os representados pela Feplana, têm sido os agentes centrais nesse processo.

Assim sendo, diante da desestatização regulatória e dos desafios contemporâneos de financiamento institucional, a articulação política em defesa do setor, a modernização jurídica e o fortalecimento de mecanismos voluntários de representação são (e serão) decisivos para garantir a continuidade do papel socioeconômico dos fornecedores de cana no desenvolvimento sustentável da bioenergia e da matriz energética brasileira.

Paulo Leal

Presidente da Federação dos Plantadores de Cana do Brasil (Feplana)