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Por que o etanol combustível ainda terá longa vida no Brasil

Série que começa nesta edição do JornalCana destaca como o biocombustível tem espaço diante motores elétricos e híbridos a hidrogênio

Motores elétricos silenciosos e que não emitem gases causadores de efeito estufa e, assim como eles, motores híbridos de eletricidade e hidrogênio verde.

Quase que diariamente somos bombardeados com divulgações em favor desses produtos tecnológicos. Eles são considerados por muitos como a solução ambiental e eficaz para a chamada transição energética.

É bom se preparar, porque esse tipo de divulgação só irá crescer até novembro, quando será realizada em Glasgow, na Escócia, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, conhecida por COP 26.

Se dependesse de tanta divulgação favorável aos motores elétricos, o etanol estaria com os dias contados e não sobreviveria até a próxima COP. Mas não é bem assim. Desde 1979 o etanol, então álcool combustível, supre veículos brasileiros e continuará suprindo por muitas e muitas décadas.

Os motores elétricos e os híbridos já estão no mercado e tendem a conquistar mais e mais consumidores, mas isso não significa que o etanol de cana-de-açúcar e de milho ficará de lado.

É este o mote desta série iniciada nesta edição pelo JornalCana. Serão conteúdos com o objetivo de destacar os próximos anos do etanol diante a eletrificação, células a hidrogênio e outras tecnologias em formatação. Para estrear a série, fomos entrevistar Jaime Finguerut, engenheiro químico com pós graduação em bioprocessos.

Finguerut integra a seleta lista de especialistas em fermentação alcoólica. Trabalhou por 40 anos no desenvolvimento do processamento industrial de cana com ênfase na otimização do processo de fermentação. Durante 41 anos integrou a equipe do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC). Desde 2017 é membro da diretoria do Instituto de Tecnologia Canavieira (ITC), ao lado de experientes especialistas no setor sucroenergético.

JornalCana: O etanol anidro e hidratado tem mercado garantido no Brasil nas próximas décadas, marcadas desde já pela descarbonização e pela substituição do ciclo Otto pelos elétricos?

Jaime Finguerut:  Muito embora as montadoras de veículos globais já tenham adotado a eletrificação “radical” nos seus planos, ou seja, em 10-15 anos não irão mais vender veículos novos com motores a combustão nos mercados principais, o que se estenderá em 20-25 anos em todos os mercados, há uma enorme base instalada de veículos rodando, cuja retirada e substituição pelos veículos novos eletrificados irão demorar muito tempo. Mesmo porque estes veículos ainda são caros.

Jaime Finguerut

JornalCana:  É por isso que o ciclo Otto terá sobrevida?

Jaime Finguerut:  É bom lembrar que o Brasil tem a sexta maior frota de veículos (e o quarto maior consumo de combustíveis) do mundo, com mais de 40 milhões de automóveis em circulação, todos eles com motor a combustão e a imensa maioria flex.

O último levantamento do IBGE de 2018 indicava mais de 100 milhões de veículos, incluindo motocicletas, caminhões, caminhonetes, tratores e outros, todos com motores a combustão, mas nem todos em circulação.

Assim, considerando que todos estes veículos rodando com combustíveis fósseis emitem carbono e que a política do RenovaBio colocou metas explícitas de descarbonização da mobilidade, através da substituição de gasolina por etanol e de diesel por biodiesel (ou diesel verde).

Considerando, ainda, que a descarbonização da economia foi nacional e internacionalmente reconhecida como uma forma de recuperação econômica, o que deverá valorizar o preço do carbono abatido (CBIOs), incentivando mais ainda a substituição da gasolina por etanol (devido à redução do preço), sem dúvida teremos um mercado garantido para o etanol hidratado e anidro por mais de 30 anos.

JornalCana: Mesmo destino positivo deve ter a cana-de-açúcar?

Jaime Finguerut: Em paralelo, é possível prever que num futuro próximo a cultura de cana será também reconhecida como uma forma de retirar carbono da atmosfera, através da adoção de boas práticas agrícolas que aumentam o teor de carbono no solo e este abatimento de carbono terá valor, através por exemplo de sistemas voluntários de abatimento (mercados voluntários de carbono), que já existem por exemplo para as florestas plantadas.

O aumento do teor de carbono no solo (por exemplo através da meiosi e rotação com soja, amendoim, plantios intercalares com Crotalaria, manejo da palha, torta de filtro e da vinhaça com biodigestão, biochar, etc.) em conjunto com melhores variedades de cana de maior produtividade (e talvez a adoção gradativa de variedades de cana-energia que têm rizomas), irão aumentar a produtividade e também reduzir o custo de produção, viabilizando aumentos de produção de etanol sem aumento de área plantada.

JornalCana: E a qualidade dos motores a combustão, tem como melhorar?

Jaime Finguerut:  Embora de difícil adoção por aqui, já existem motores a combustão de última geração, dedicados a etanol (que é um combustível melhor do que a gasolina), que poderiam ter quase o mesmo consumo por quilômetro do que à gasolina e, portanto, além de reduzirem as emissões, teriam um custo de combustível por quilômetro rodado menor, já que (hoje) o etanol custa cerca de 30% menos.

JornalCana: Os motores híbridos e bioeletrificação, qual sua opinião?

Jaime Finguerut:  Trata-se de um outro conceito também em implantação por aqui são os motores híbridos, ou seja, que permitem rodar com eletricidade (na cidade) e com combustão a etanol (que recarrega as baterias), tornando também o transporte mais eficiente. Finalmente muito se discute sobre uma possível bioeletrificação da mobilidade, onde se retira eletricidade (elétrons) do combustível (etanol) numa célula a combustível (algo parecido com uma pilha) e essa eletricidade movimenta o motor elétrico.

Este sistema ainda em desenvolvimento inicial também é mais eficiente do que o motor flex e talvez mais eficiente do os motores de última geração a etanol e usam poucas baterias, mas estes ainda têm um cano de escape, por onde sai o CO2 e a água correspondentes à composição do etanol.

O veículo elétrico não tem cano de escape, portanto não emite carbono nas grandes cidades. No entanto ele tem as suas emissões correspondentes à fonte de eletricidade usada para a recarga e as emissões correspondentes à fabricação do veículo e das baterias.

JornalCana: Se grandes países como Índia ampliarem o consumo de etanol anidro para mistura à gasolina, como o setor sucroenergético brasileiro pode atuar nessa expansão de consumo?

Jaime Finguerut:  Na Índia, a cultura da cana-de-açúcar tem enorme impacto econômico, representando o sustento de milhões de pessoas, tendo em vista o pequeno tamanho das fazendas de produção de cana. Para que seja possível pagar esta cana de centenas de milhares de produtores, será necessário agregar mais valor, além de, como no Brasil no início do Proálcool, o país ainda importa boa parte do petróleo que necessita.

A Índia tem também as cidades mais congestionadas e poluídas do mundo e a produção do etanol que substitui a gasolina, equaciona todos estes problemas. Eles têm tecnologia para a produção de etanol, muito embora as destilarias sejam de menor porte do que as daqui e a grande experiência deles é no uso de melaço esgotado.

Também, como eles têm ainda uma economia muito dependente do Estado, com subsídios e incentivos, a questão da eficiência e do custo não os fatores mais importantes, assim é realmente muito provável que eles irão produzir etanol de cana (melaço e caldo) e também etanol de segunda geração a partir de resíduos agronômicos que hoje são queimados após a colheita, causando muita poluição.

É intenção deles também introduzir os motores flex e permitir a venda do hidratado, além de aumentar a mistura do anidro, seguindo os passos do nosso país.

Foto: Arquivo/JornalCana

JornalCana: Como o Brasil poderá cooperar com essa nova oportunidade, aberta também pela China?

Jaime Finguerut:  A cooperação com o Brasil (com Índia e China) se dará nos aspectos regulatórios do uso de etanol, nos motores flex, nos sistemas de produção centralizada, distribuição e comercialização.

E, provavelmente, com exportações e importações de etanol nos momentos em que for necessário devido à redução de produção e da existência de excedentes, como hoje ocorre no mercado americano, colaborando para estabelecer o etanol como commodity.

JornalCana: Hidrogênio a partir do etanol: como é possível? Temos tecnologia para isso? Como viabilizar?

Jaime Finguerut:  Sim, o Hidrogênio é o composto de maior valor energético por quilo (e também o mais leve e o mais comum no Universo, cerca de 70% da massa conhecida) que conhecemos e uma boa parte do valor energético do etanol (que liberamos na combustão, por exemplo) se deve ao seu bom conteúdo deste composto (o etanol tem três Hidrogênios para cada Carbono).

Já há décadas que se pensa no Hidrogênio como um vetor energético atrativo, que potencialmente poderia (no futuro) substituir o petróleo (feito de Hidrocarbonetos- Hidrogênio + Carbono, também rico em Hidrogênio) tendo em vista que a sua queima só gera vapor d’água, sendo, portanto, uma alternativa à mobilidade elétrica, pois esta também não emite localmente carbono.

Além de ser um vetor de descarbonização, por seu elevadíssimo conteúdo energético (por quilo), ele pode servir também para descarbonizar modais de transporte onde dificilmente baterias poderão ser usadas (como na aviação e no transporte super-pesado, onde a bateria teria de ter proporções gigantescas).

Por este mesmo motivo (alta densidade de energia) e a possibilidade de poder ser armazenado na forma comprimida, ele também é um excelente “carregador” (vetor) de energia elétrica renovável pois é relativamente fácil produzi-lo através da eletrólise (quebra pela eletricidade) da água.

Esta produção é quase “grátis” quando há excesso de geração (solar ou eólica) e a rede não apresenta demanda suficiente. E essa energia que seria “desperdiçada” pode ser armazenada num vetor totalmente não carbônico.

JornalCana: É aí que entra a célula a combustível?

Jaime Finguerut:  O Hidrogênio pode ser usado de forma mais eficiente do que num motor a combustão num sistema que já descrevemos acima, a Célula a Combustível que podemos agora entender como o contrário da eletrólise, pois nesta a água é decomposta em seus constituintes Hidrogênio e Oxigênio por ação da corrente elétrica enquanto que a célula a combustível faz o Hidrogênio reagir com o Oxigênio (do ar) com a exportação de energia elétrica, tudo isso de forma muito eficiente.

Por sua vez, esta corrente elétrica pode servir por exemplo para mover um veículo (automóvel, caminhão, barco) sem a necessidade de tantas baterias.

Como, no entanto, o Hidrogênio normalmente gasoso, é muito leve, gasta-se muita energia para comprimi-lo e assim, produtos como o etanol que é líquido e tem um bom teor de Hidrogênio pode ser uma forma conveniente de levar o Hidrogênio a longas distâncias.

JornalCana: Como se produz Hidrogênio a partir do etanol?

Jaime Finguerut:  O Hidrogênio pode ser produzido a partir do etanol (e outros compostos como o metano do biogás, por exemplo) através de um processo termoquímico chamado de reforma.

Normalmente para a produção de Hidrogênio a partir dos hidrocarbonetos (como o metano, que tem 4 Hidrogênios para cada carbono) se faz a assim chamada Reforma a Vapor, onde se retira também Hidrogênio da água, o que aumenta o rendimento da reação.

A Reforma a Vapor também pode ser usada para o etanol, no entanto a reação de vapor d’água com etanol em temperaturas relativamente elevadas e na presença de catalisadores, exige a adição de quantidades apreciáveis de energia, assim normalmente se acopla duas reações, a reforma a vapor com a oxidação parcial do etanol, sendo esta uma reação exotérmica que fornece a energia para a reforma, com pequena redução do rendimento energético.

Após as reações, o Hidrogênio é purificado e está pronto para ser usado, injetado na rede de gás natural ou usado em processos químicos (produção de amônia, de vidro, de gasolina e diesel etc.), substituindo o Hidrogênio Cinza (feito do gás natural, que é o Hidrogênio mais barato e mais usado hoje) e complementando e estabilizando o Hidrogênio Verde (feito pela eletrólise da água usando energia renovável e muito variável).

Este modelo híbrido, de eletrólise da água e de reforma de etanol tem uma excelente intensidade de carbono, podendo ser muito valorizado quando do estabelecimento de mercados de carbono.

JornalCana: O senhor tem apresentado em webinars a proposta de biorrefinaria híbrida. De que trata?

Jaime Finguerut:  A proposta de uma biorefinaria híbrida é aquela onde vários modais de captura de energia solar são usados juntos e de forma sinérgica.  Por exemplo, podemos pensar em associar a captação solar fotovoltaica com a agricultura (que capta energia solar pelas folhas na fotossíntese), assim, uma parte das plantas cresceria parcialmente sombreada, o que pode, para alguns tipos de culturas ser benéfico para a produtividade, além de reduzir a temperatura das placas fotovoltaicas, o que aumenta o seu tempo de vida útil, além de reduzir a temperatura no solo e eliminando o excesso de transpiração.

Esta energia solar poderia ser usada na Usina, por exemplo, para a produção de hidrogênio e este composto usado numa reação catalítica com o CO2 que é produzido abundantemente quase puro na fermentação, com a formação de maior quantidade de biocombustíveis por hectare e assim, aumentando a descarbonização. Outra biorefinaria híbrida já descrevi acima juntando captação solar, eletrólise da água, produção de cana (em outro local) para produção de etanol que será usado no seu destino final para síntese de hidrogênio, que complementa o hidrogênio da eletrólise, feito com a energia solar.

Existem ainda outros modelos de biorrefinaria que conseguem armazenar melhor a energia capturada na fotossíntese usando outros vetores e que podem potencialmente complementar a produção de etanol vantajosamente. Isso ainda está em desenvolvimento. Finalmente a Usina atual poderá fazer além de substitutos da gasolina (etanol e biometano) e diesel (biometano, em motores adaptados) também biocombustíveis de aviação, bionafta e bioGLP usando o etanol ou o metano como matérias-primas para outros processos catalíticos.

JornalCana: O sr. prepara livro a respeito? Fale sobre ele.

Jaime Finguerut:  Sim, se trata de um capítulo, ainda no prelo intitulado “Biorrefinarias híbridas e produtividade da cana-de-açúcar: incrementos à política do RenovaBio” no livro “CAMINHOS JURÍDICOS E REGULATÓRIOS PARA A DESCARBONIZAÇÃO NO BRASIL” com diversos autores.

JornalCana: Para finalizar, sua opinião sobre o etanol celulósico: por que ele não deslancha no Brasil?

Jaime Finguerut:  O etanol celulósico traz a possibilidade de aumentar a produção por hectare, usando como matéria-prima a fração fibrosa excedente da cana (bagaço ou palha) ou qualquer resíduo de plantas.

Também, como no sistema de contabilização de emissões de carbono, os resíduos celulósicos são considerados como não tendo nenhuma emissão (ao contrário da cana, que tem as suas emissões devidas aos adubos, ao diesel das máquinas, etc.).

Assim, o etanol celulósico resulta com uma “intensidade de carbono” muito baixa, o que no RenovaBio e principalmente para a exportação para locais incentivados como a Califórnia (nos EUA) e para a Europa resulta em prêmios significativos, incentiva a sua produção.

Ocorre que estes mercados a prêmio, sejam eles mercados regulados (como os da Califórnia e da Europa onde são os governos, os impostos, que financiam a introdução da tecnologia) sejam os mercados voluntários (empresas que querem comprar e utilizar o etanol celulósico como um insumo mais sustentável), são relativamente pequenos em comparação com o etanol combustível de primeira geração e, como o etanol celulósico ainda é mais caro do que o da primeira geração, não se consegue “ligar” a curva de aprendizado (aprender fazendo) que levaria à uma redução de custo e o consequente aumento da produção, num ciclo que seria virtuoso.

No início do RenovaBio houveram discussões sobre como dar mais valor à grande redução de emissões do etanol celulósico, porém apesar de gerar digamos no mínimo 20% a mais de CBIOs, isso não é suficiente para estabelecer uma indústria madura e competitiva ou complementar ao de primeira geração.

Assim, o etanol celulósico apesar do seu apelo sustentável e a possibilidade de poder ser fabricado quase que em qualquer lugar (inclusive usando frações de lixo urbano) segue sendo uma especialidade, que pode ser lucrativa para poucos produtores.

Delcy Mac Cruz

Esta matéria faz parte da edição de maio do JornalCana. Para ler, clique AQUI!

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