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A Suécia não é aqui

O PIB industrial sueco produzido na região metropolitana de São Paulo é superior ao de Estocolmo. Kerstin Nordin, executiva da Câmara de Comércio Exterior da Suécia, começa a recitar uma lista infindável de empresas – Scania, Electrolux, SKF, Tetra Pak – antes de concluir que fica mais fácil pegar na internet. Apenas Gotemburgo, no sul do país, rivaliza com São Paulo, mas nenhuma outra cidade do mundo concentra tamanha quantidade de indústrias suecas.

A executiva já esteve na pátria das chaminés suecas. “Não conheci muito de São Paulo. Fui aconselhada a não andar pelas ruas.” Na noite seguinte, a 8,5 mil quilômetros dali, um compatriota seu seria morto num assalto ao hotel em que estava hospedado na praia de Pipa (RN).

Serve-se da água da torneira ao esperar sua salada no pequeno restaurante da estação de trem no centro de Estocolmo. Fala com mais familiaridade de Minneapolis, no Estado americano de Minnesota. “É como se estivéssemos na Suécia – os sobrenomes, os nomes das lojas, os museus, tudo nos remete ao nosso país.” A cidade, no início do século passado, recebeu a maior concentração de imigrantes suecos. “O país era muito pobre naquela época. Mais de um milhão de suecos deixaram o país. A maioria foi para os EUA”, explica.

Para o Brasil veio o capital, majoritariamente depois da Segunda Guerra, quando os suecos, valendo-se de sua condição estrategicamente neutra, alavancaram o fornecimento aos beligerantes, fazendo bombar sua economia. Hoje a Suécia e seus 9 milhões de habitantes cabem com folga dentro de São Paulo. Mas não poderia haver distância maior entre os indicadores do país que concentra o maior número de chaminés suecas e a pátria do bem-estar social.

Depois de encher seus parques de pais que, a exemplo das mães, também usufruem de licença remunerada para empurrar os carrinhos de bebês, a ! Suécia também avança no pioneirismo do desenvolvimento sustentável. Na última semana de fevereiro, Estocolmo foi escolhida pela União Europeia como sua capital verde. Agora impulsiona suas empresas de reciclagem de lixo, tratamento de água e energia alternativa para vender ao mundo soluções de desenvolvimento sustentável, como no seminário que promoverá em São Paulo na próxima semana.

A distância que o colchão de bem-estar escandinavo já havia colocado em relação às precárias estruturas sociais dos países em desenvolvimento já era gigantesca. Com as geniais soluções que as empresas suecas estão desenvolvendo para reduzir a emissão de gás carbônico, condensadas no conceito já patenteado de SymbioCity, esse fosso, à primeira vista, parece intransponível.

De tão grande, a distância turva a dianteira. “Aqui na Suécia, você tem que usar”, diz Gunnar Boman, executivo da Scania, olhando para a passageira ao lado que já havia colocado o cinto de segurança.

Na fábrica, ! cuja filial brasileira empregou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos maiores orgulhos é o ônibus movido a etanol, que responde hoje por um terço da frota de ônibus de Estocolmo. O modelo ainda não é produzido no Brasil, de onde vem a quase totalidade do combustível renovável usado na Suécia. “O investimento para a Scania começar a produzi-los em São Bernardo seria baixíssimo. O que falta é demanda”, diz Urban Wastljung, executivo responsável pela área de ambiente da Scania.

A popularidade do etanol brasileiro hoje na Suécia só perde para Marta, melhor jogadora de futebol do mundo, atleta do Umëa, time da cidade homônima, a norte de Estocolmo. Usar um carro a álcool é parte do comportamento politicamente correto que pauta a vida no país.

Eva Sunnestadt, coordenadora do projeto de veículos verdes da Prefeitura de Estocolmo, usa um broche de beagle no seu colete. Começa a exibição em Power Point do projeto que visa a estimular o uso do carro flex. Não demora ! a aparecer a foto do cortador de cana no Brasil. “Os fornecedores brasileiros nos garantiram que em 2014 toda a produção estará mecanizada”, afirma, com um semblante sério, bem informada sobre o protocolo firmado entre Brasil e Suécia para o fornecimento do combustível. “O caminho é certificar o etanol. Vamos querer saber como se faz o combustível que usamos, da mesma maneira que nos perguntamos como se fazem as frutas e as roupas que compramos.”

A empresa de ônibus de Estocolmo tem ISO 14001, o mais avançado certificado ambiental em vigor. Sara Anderson, responsável pela implantação do programa ambiental da empresa, está informada de que no Brasil a produção de etanol não é uniforme. “Não há lugares onde a produção é mais mecanizada do que em outros? Acho que compramos de onde a produção é mais moderna”, diz, timidamente, sem pretender que seu argumento soe como um habeas corpus.

Estão todos imbuídos do objetivo de propagar a Suécia como produtora de soluções pa! ra o desenvolvimento sustentável. Mas ninguém desconhece o estímulo fiscal necessário para que essa consciência verde do sueco desabroche. Até dezembro, quem comprasse um carro flex no país teria dois anos de isenção do pedágio cobrado para entrar em Estocolmo. No fim do ano, houve uma explosão de vendas do carro flex, que já responde por 10% da frota do país. Em janeiro, as vendas de carro a álcool despencaram pela metade.

A queda do preço da gasolina não tem sido um estímulo à consciência ambiental sueca. No fim de fevereiro, o etanol era vendido a 9,5 coroas/l (? 0,82), enquanto a gasolina custava 10,5 coroas/l (? 0,91). A diferença pró-etanol não é suficiente para compensar a eficiência maior da gasolina.

O ministro do Meio Ambiente, Andreas Carlgren, aposta num colapso temporário do preço do petróleo. Diz que a Suécia deve estimular a produção do etanol com o mercado de crédito de carbono, além de cumprir a meta de aumentar de 5% para 10% a mistura do etanol na gasolina.

A sede do ministério e seu titular são a personificação da cultura do politicamente correto. Ao lado das cestas de frutas que adornam a entrada do ministério, uma coluna de madeira exibe o currículo do ministro. A primeira linha é a mesma que está na página do ministério na internet: “Nascido em 8 de julho de 1958. Mora em Estocolmo. É casado com Tomas Harila e tem três crianças.” A informação de que é casado com um homem precede sua filiação ao partido do centro.

Chega à sala onde é aguardado com um pedido de desculpas pelo atraso. Cumprimenta cada um dos oito jornalistas presentes, de cinco nacionalidades – China, Índia, África do Sul, México e Brasil – e mede cada palavra: “Nossa principal meta é responder aos desafios das mudanças climáticas. São os países desenvolvidos que têm que liderar esse processo. Os países em desenvolvimento são antes vítimas que vilões. E precisamos colaborar para que também sejam capazes de reduzir a emissão de gás carbônico.”

O orgulho pelas conquistas ambientais é definitivamente mais compartilhado do que o sentimento de culpa. Do outro lado da cidade, no encontro com autoridades do aeroporto de Arlanda o orgulho atende pelo nome de pouso verde. Niklas Härenstam, executivo da empresa escandinava de aviação (SAS), explica que apenas 2% das emissões de gás carbônico vêm da aviação. E, desse porcentual, apenas 0,4% é produzido na Suécia. E mesmo assim, conclui, foi o país que tomou a liderança, fazendo seus aviões começar a descer em curva, em vez do percurso em etapas, como quem desce uma escada. A redução, garante, é de 20% do combustível usado durante toda a viagem. E a mudança tornou ainda mais preciso o tempo de voo.

“Como é que surgiu essa ideia?”, pergunta a jornalista chinesa. O jovem alto, magro e seguro de si responde: “Tivemos essa ideia e espero que os outros nos sigam pelo bem de todos.” Com um riso no canto do lábio continua: “No primeiro pouso verde não acer! tamos nossa previsão do horário de chegada. Erramos por dois segundos.”

Soluções como o pouso verde custam pouco, mas reconhecidamente funcionam melhor em bases aéreas de porte médio como Arlanda. Em aeroportos de maior movimento como Heathrow, em Londres, por exemplo, o pouso verde já foi experimentado, mas não com a mesma eficiência.

Outras soluções, como o uso de energia solar, não por acaso se expandem num país que tem uma taxa de poupança acima de 20% do PIB. “Os gastos aqui não resistem a um contabilista”, revela o engenheiro aposentado da Ericsson Stig Ram, síndico de um condomínio de 50 casas em Enerbyberg, ao norte de Estocolmo. A energia solar é captada por placas que cobrem inteiramente o telhado e armazenada num gigantesco depósito subterrâneo de granito ao lado para uso no longo inverno da região, quando as temperaturas chegam a -20º C. Na mesma latitude da Groenlândia, a Suécia só não é um bloco de gelo o ano inteiro por causa das correntes marítimas do Atlântico Sul.

O sistema instalado no condomínio, que garante 60% de redução no uso de energia convencional, teve um subsídio de apenas 10% do total investido. O restante foi custeado pelos moradores, que abriram mão de alguns radicalismos ambientais, como ruas de terra, por causa da poeira no verão e da lama de neve derretida. O investimento se paga em 20 anos, diz o engenheiro, enquanto mostra sua casa cercada de jardim e iluminada pelo sol que entra pelas paredes de vidro triplo do teto ao chão. Na garagem, um conversível inglês de 1965, coberto por uma capa, é usado esporadicamente.

Enerbyberg dista 10 quilômetros de Estocolmo. Para chegar ao centro passa-se por um dos 18 pontos de pedágio espalhados na entrada da cidade. O valor varia conforme a hora e o número de vezes em que o carro cruza o marco eletrônico. Paga-se um mínimo de 10 coroas (? 0,86) e um máximo de 60 (? 5,21). A cobrança é feita via boleto bancário, com a foto da ocorrência, como nas multa! s de velocidade ou rodízio das cidades brasileiras.

A apresentadora do programa do pedágio, Eva Söderberg, funcionária da agência de transportes, chega com a filha adolescente, que está na semana de férias escolares de inverno. Pedala duas horas por dia em seu trajeto casa-trabalho-casa e raramente paga o pedágio. Mostra uma pesquisa de opinião anterior à adoção da experiência em que a maioria era contra. O tema provocava cisões entre os partidos. A esquerda, capitaneada pelos sociais-democratas, era a favor. Os moderados, que hoje lideram a coalizão de poder, eram contra.

As pesquisas mostravam que a população era contrária à medida. O governo resolveu fazer um experimento durante sete meses. A redução no tráfego chegou a um quarto dos veículos no horário de pico e a emissão de poluentes baixou 14%. Metade dos motoristas dos carros que desapareceram optou pelo transporte público, cuja oferta foi incrementada. A outra metade mudou seus horários. A população de Estoc! olmo virou de opinião e votou favoravelmente ao pedágio por uma margem estreita, enquanto os moradores de outros municípios consultados mantiveram-se contra.

O debate foi acalorado. Os moderados, que haviam prometido levar em consideração o resultado dos demais municípios, aferraram-se ao de Estocolmo quando chegaram ao poder e implantaram o pedágio depois da aprovação pelo Parlamento. A arrecadação, que havia sido inicialmente pensada para incrementar o transporte público, acabou sendo destinada a financiar primordialmente um túnel cruzando a capital.

Apenas os carros registrados na Suécia pagam o pedágio. “E não houve um aumento de registro de carros na Finlândia ou na Noruega?” Eva mostra-se surpreendida. Nunca viu o número de placas de Curitiba que circulam por São Paulo, onde se cobra um dos IPVAs mais caros do Brasil. Apenas 1% dos carros que circulam na Suécia é registrado em outro país. “A polícia pegaria a burla”, assegura, com convicção.

Nem todos s! ão satisfeitos com o grau de adesão da opinião pública sueca às causas ambientais. Ewa Baumgartner, gerente de comunicação de uma empresa que trata água sem usar cloro, mostra a lista de países que aderiram ao tratado internacional sobre a água de lastro. Lamenta a ausência da Suécia, que atribui ao lobby da indústria de navegação e à desmobilização da opinião pública. Mostra estatísticas aterradoras sobre a ameaça à vida marinha causada pela água usada para balancear os navios. Os cargueiros se abastecem com a água de um país e descarregam em outro. “É muito difícil explicar isso às pessoas”, afirma, distribuindo o material de divulgação de sua empresa, que limpa essa água de lastro, com uma caneta feita de palha de milho.

Fala no spa de um hotel nos arredores de Estocolmo onde a água é toda tratada por sua empresa. Do lado de fora das paredes envidraçadas, sobre o jardim coberto de neve, vê-se uma reprodução da cabana dos samis, nativos que moram no ártico sueco. O ger! ente diz que os turistas ficam impressionados com a ausência de cheiro de cloro. E leva o grupo para um bar no subsolo “onde vocês vão ficar ainda mais impressionados”. O bar é todo feito de gelo a partir da água de uma nascente de rio, que o deixa mais transluzente.

A caminho do almoço, o gerente do hotel, que é focado em turismo de negócios, mostra a “sala asiática”, cheia de tapetes, budas e quadros chineses. “Nossos turistas chineses dizem se sentir em casa aqui.” A SAS tem voo direto para Pequim, com praticamente a mesma duração (9 horas) do trajeto Estocolmo-Nova York. Pequim, segundo a jornalista chinesa, está entulhada de Ikeas, a varejista sueca de artefatos para casa. “As pessoas vão lá, copiam e vendem mais barato”, conta.

No almoço, o gerente diz que o hotel não acusa a crise. No início de fevereiro já não havia vagas para março. Mora em Hammarby Sjöstad, o bairro ambiental modelo de Estocolmo, onde está ancorado o barco que usa nos fins de semana. Tira de s! eis a sete semanas de férias por ano. “É o jeito sueco de ser. Sabemos que é preciso balancear.” Os três jornalistas chineses fazem as contas juntos e concluem que tiram mais de cem dias por ano. Incluídos os fins de semana, explicam. Dá dicas de Estocolmo e garante que o centro da cidade é seguríssimo para se andar à noite. “Não é como no ….”, e muda rapidamente de assunto sem concluir a frase ao se dar conta da nacionalidade da jornalista ao seu lado.

Hammarby Sjöstad, onde o gerente avista seu barco da janela da cozinha, é um bairro próximo da perfeição. Está tão longe de Cidade Tiradentes quanto o céu do inferno. Foi planejado quando Estocolmo sonhava sediar as Olimpíadas de 2004, que acabaram ocorrendo em Atenas. E acabou sendo tocado mesmo assim para fazer frente ao déficit habitacional da cidade.

De antiga área degradada por dejetos industriais, virou o lugar mais desejado para se morar em Estocolmo. O último prédio que construíram lá anunciou a abertura de ! seu estande de vendas para um domingo. Na quinta-feira, durante o pico do inverno, a fila já alcançava dois quarteirões. Um apartamento de 80 m2 é hoje vendido por ?400 mil.

Nada lá é desperdiçado. O sol é captado por telhado coberto de painéis. A água da chuva é reaproveitada e até o número 2, como todos falam desavergonhadamente, vira energia. O lixo é virtual. Tudo é separado e sugado por canos que percorrem o subterrâneo do bairro até depósitos de coleta. É de lá que os caminhões o recolhem também por sugadores. O lixo orgânico vira adubo ou gás. O restante vai para uma usina de incineração também geradora de energia.

O gerente de marketing da empresa de lixo que montou a rede de Hammarby mostra as fotos dos locais em que já atuou, de Disney a Dubai. “Aqui em Hammarby, como os prédios são baixos, custa o equivalente a um laptop por morador. Mas em prédios mais altos esse custo fica diluído.” Ao começar sua exposição como-é-e-como-pode-ficar, mostra a foto de um! a rua, onde as placas da loja estão em ideogramas chineses com um caminhão tradicional de lixo a atravancar a passagem e a derrubar resíduos pelo chão. “Vocês sabem onde fica?”, diz, virando-se para os jornalistas chineses. “Em Macau.”

A exposição termina com as fotos da paradisíaca Hammarby Sjöstad. Ao fim da exposição, a assessora que acompanha o grupo diz que eles bem que podiam implantar alguma coisa parecida no bairro em que mora, no centro de Estocolmo. “As latas lá ficam abarrotadas com o lixo dos turistas.”

No caminho de volta, o rádio do ônibus transmite ao vivo o encontro entre o primeiro-ministro Fredrik Reinfeldt e o rei Carlos Gustavo no qual seria anunciado o noivado da princesa Victoria, primeira na linha sucessória do trono, com Daniel Westling, dono de uma academia de ginástica no norte de Estocolmo. A Constituição prevê que os casamentos da família real devem ser aprovados pelo governo.

A assessora comenta que 80% da população aprova a monarqu! ia e a imprensa não traz reportagens desfavoráveis à família real. De fato, a primeira página dos jornais no dia seguinte eram quase integralmente tomadas pelas fotos do casal. Mas entre os colunistas e os blogueiros o clima ia do embevecimento à beligerância.

Em resposta a um blogueiro que considerara a monarquia desmoralizada pelo casamento, um colunista escreveu que não era a primeira vez que a monarquia sueca admitia pessoas do povo. Não bastasse a rainha (filha de um empresário alemão e de uma dona de casa brasileira), a princesa anda dera entrevista com o quadro, ao fundo, de Jean-Baptiste Bernadotte, um juiz provincial da França escolhido por Napoleão para fundar a atual dinastia sueca. “São pessoas como ele que construíram a maior parte das indústrias suecas, pagam seus impostos, votam nos políticos e compram jornais. Que um deles esteja se juntando à família real deveria seguramente ser motivo de orgulho nacional”, afirma o comentarista.

Entrevistada na rádio! , a líder da oposição, Mona Salin, diz que aquele deveria ser lembrado como o dia do amor. O ônibus deixa as ruas de Hammarby Sjöstad, onde se vê a maior concentração de carrinhos de bebê de Estocolmo, enquanto a rádio fecha a reportagem tocando “All You Need Is Love”, dos Beatles.

A jornalista viajou a convite do governo da Suécia

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