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A miopia dos organismos internacionais

Os organismos internacionais enfrentam, atualmente, uma verdadeira saraivada de críticas, algumas consistentes, outras não. O fato é que acontecimentos recentes colocam em xeque o modo de atuar da Organização das Nações Unidas e de suas afiliadas.

Tratada, há poucos meses, como “irrelevante” pelo presidente norte-americano, George W. Bush, em sua necessidade de demonstrar a força de seu país como potência hegemônica, a ONU recuperou um pouco do seu prestígio na medida em que a intervenção no Iraque não teve resultado tão favorável como esperava a Casa Branca. Os atentados diários fizeram com que os EUA fossem à organização pedir apoio e soldados para garantir um mínimo de segurança no país ocupado. E o presidente Bush, quando pede, espera ser atendido, uma vez que seu país é o principal financiador desses organismos internacionais.

Acostumados a usarem o seu peso político e econômico, os norte-americanos encontraram na União Européia um parceiro nas ocasiões que envolvem qualquer oportunidade para emperrar futuros avanços na liberalização do comércio agrícola. No entanto essa aliança acaba por deixar cicatrizes nos organismos internacionais, diante da imposição da visão de mundo do mais forte. A OMC (Organização Mundial do Comércio) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) foram, recentemente, vítimas dessa miopia que desconsidera as necessidades de todos em benefício dos mesmos.

Na conferência ministerial de Cancún, em setembro, a OMC viu-se às voltas com a rebelião dos pobres, descontentes com o fato de a organização ter incorporado, com poucas alterações, o acordo entre EUA e União Européia na questão agrícola. Esse acordo, fechado com vistas às negociações no âmbito da rodada de Doha, procurava preservar o máximo possível os subsídios europeus às exportações e o apoio doméstico norte-americano aos seus agricultores.

Se o encontro no México começou com o enfrentamento do bloco G21, formado pelos países que pedem mais liberdade no comércio agrícola, terminou com um verdadeiro banho de água fria nos itens que envolviam a abertura dos mercados de serviço e investimento. E o balde foi derramado na última hora pelos países mais pobres.

Se a OMC paga o preço por voltar os olhos aos interesses dos países ricos, na OMS o caso é de miopia

Agora, os países-membros da OMC recolhem os cacos e buscam novas articulações para o próximo “round”, a ser disputado na sede da entidade, em Genebra.

As alianças visando o futuro, como a firmada entre norte-americanos e europeus sobre tema agrícola, em nada afetam a disposição de cada um para defender seus interesses em temas definidos em rodadas anteriores. É este o caso do painel (comitê de arbitragem) pedido pelos EUA e Austrália, contra a União Européia, relacionado ao registro de patentes para vinhos e outros tipos de bebidas e de produtos regionais sob o conceito de “indicação geográfica”. Nesse caso, o Brasil oficializou sua participação como terceira parte, contra o desejo dos europeus de considerar como “marca” denominações como “champanhe”.

Esses interesses conflitantes e a falta de uma firme orientação da OMC têm resultado em volumes crescentes de processos abertos em Genebra e na possibilidade de adiamento da rodada de Doha, a única negociação multilateral de comércio com prazo para terminar.

Se a OMC paga o preço por voltar os olhos aos interesses dos países ricos, na OMS o caso é de miopia, para não dizer cegueira. O relatório técnico nº 916 (dieta, nutrição e a prevenção de doenças crônicas), realização conjunta da OMS e da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), presta um desserviço à ciência, à população dos países em desenvolvimento e à economia dos mesmos, com recomendações para a saúde mundial voltadas às necessidades de uma classe média dos países ricos, onde a obesidade e suas consequências tornaram-se preocupação de saúde pública.

A recomendação de que o consumo diário de açúcar se restrinja a não mais de 10% da ingestão diária de calorias perde completamente a seriedade quando confrontada com a situação de vários países da África, América Latina e Ásia, nos quais o açúcar é uma fonte acessível e barata de energia.

Ao colocar o açúcar no banco dos réus, a OMS não deu o peso devido à vida sedentária e ao consumo excessivo de gorduras, nem à importância da higiene bucal na prevenção de cáries. A pesquisa deficiente foi temperada com falta de bom senso, ao prescrever a mesma dieta para o obeso e o subnutrido. O mais preocupante, porém, é o fato de o relatório atual ignorar trabalhos anteriores sérios, como “Carboidratos na Alimentação Humana”, realizado pela FAO/OMS em 1998. O contato com a realidade é o melhor remédio contra esse tipo de miopia e falta de memória.

Eduardo Pereira de Carvalho, 64, economista, é presidente da Unica (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo).

Fonte: Folha de São Paulo

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