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A consagracão do carro flex

Entre considerações sobre a ocupação do Iraque e imprecações contra o terrorismo, o presidente americano George W. Bush surpreendeu a platéia durante um pronunciamento realizado no mês passado, em Chicago, ao falar dos carros flex fuel, ou bicombustível. Bush se pôs a advogar em favor das fontes alternativas de energia — mais precisamente o etanol. “As pessoas se perguntam por que investir em etanol se nossos carros não são compatíveis? Isso não é verdade. Já existem 5 milhões de veículos flex fuel nas estradas hoje e a tecnologia para tornar nossos carros cada vez mais compatíveis com o uso do álcool já está disponível”, disse Bush na ocasião. No dia anterior, o jornal Washington Post trazia uma reportagem cujo título era: “GM esconde seus carros mais eficientes — no Brasil”. O jornalista do Post pilotou na pista de testes da empresa, no interior de São Paulo, modelos como Meriva, Corsa e a picape Montana nas versões FlexPower. Depois, escreveu: “Saí da GM do Brasil me perguntando como uma empresa global, com tanta gente preparada e inteligente, pode fazer uma coisa tão estúpida como manter alguns de seus melhores carros fora de um mercado que está implorando por eles”. O mercado, no caso, é o americano.

Em tempos de petróleo caro, Bush e seus compatriotas sonham com um combustível alternativo para movimentar a frota americana de automóveis. No Brasil, o sonho de Bush já virou realidade há alguns anos. O carro flex fuel — tecnologia criada e desenvolvida por engenheiros brasileiros — está consagrado no país. Hoje quase 10% da frota nacional utiliza o sistema. Em maio, 76% dos carros novos vendidos no Brasil tinham motores bicombustível. É um índice que, pelos cálculos das montadoras e fornecedores de componentes, deveria ser atingido apenas em 2010. A Volkswagen — que lançou o primeiro carro flex em 2003 — anunciou que a partir deste mês só produzirá carros com motores bicombustível, num claro sinal de confiança na tecnologia. O Brasil tem outra vantagem em relação aos Estados Unidos. Aqui já existe a cultura do combustível alternativo, herança dos velhos carros a álcool da década de 80 (são cerca de 30 000 postos com álcool ante pouco mais de 600 nos Estados Unidos). Enquanto lá o carro flex é uma etapa de transição até o desenvolvimento de um modelo energético alternativo, no Brasil é uma espécie de seguro para o consumidor contra aumentos de preço e falta de combustível — daí o apelo.

O carro flex é obra conjunta de centenas de engenheiros, técnicos e mecânicos em um punhado de empresas — fabricantes de componentes, montadoras e mesmo usinas de álcool. No entanto, se não fosse o empenho dos dois executivos retratados acima, o flex jamais teria saído do papel. Engenheiro com especialização na Alemanha, Besaliel Botelho é vice-presidente executivo para a América Latina da alemã Bosch. Nos anos 90, dirigia a área onde foi criado o primeiro sistema bicombustível do país. O sistema flex da Bosch ficou pronto em 1992 e foi instalado em um Omega, exibido em 1994. A tecnologia usava sensores para reconhecimento de combustível que aumentavam em 100 dólares o preço do carro. Pode parecer insignificante, mas esse foi um dos fatores que colocaram o projeto na geladeira. “Levávamos o Omega para todo lado, mas ninguém queria ouvir falar de álcool como combustível”, diz Botelho. “Tivemos de insistir muito.” Radicado no Brasil, o bolonhês Silverio Bonfiglioli é o presidente da unidade que produz os sistemas de injeção eletrônica da Magneti Marelli, conglomerado de autopeças do grupo Fiat. Enquanto a Bosch tentava reduzir o custo de sua tecnologia — o que de fato conseguiu, baixando o preço dos sensores para 25 dólares –, a equipe brasileira comandada por Bonfiglioli apostou numa linha diferente: seus técnicos desenvolveriam um software automotivo que não exigisse sensor algum. O resultado veio em 1998, com o lançamento de uma tecnologia mundialmente inédita que deixaria a Bosch para trás. “Mudamos drasticamente a relação de custos do sistema”, diz Bonfiglioli. Hoje, 58% dos automóveis bicombustível brasileiros usam a tecnologia da Marelli.

Como acontece com quase todas as inovações tecnológicas, os carros flex precisaram percorrer um longo caminho antes de chegar ao mercado. Primeiro pela resistência que algumas empresas têm em adotar novidades. Depois porque o brasileiro havia perdido a confiança em carros a álcool — efeito do desastre do Proálcool, que levou à crônica falta do combustível na década de 90. Seria preciso, portanto, recuperar a confiança do consumidor — missão normalmente inglória no mundo dos negócios. A conjuntura econômica ajudou. Em 2000, o preço do petróleo voltou a subir, enquanto o preço do álcool — afetado pela falta de demanda — estava em baixa. Essa situação provocou um fenômeno curioso: os motoristas passaram a misturar, por conta própria, álcool à gasolina na hora de encher o tanque — uma mistura chamada “rabo-de- galo”. Foi a senha para que os entusiastas do carro flex que trabalhavam na Volkswagen pressionassem a direção da montadora para adotar a tecnologia. A Volks era a única que ainda tinha motores a álcool em linha, o que facilitaria a introdução do sistema. “Em 1993, na época da Autolatina, havíamos criado um Versailles bicombustível. A adaptação nem é tão complexa, uma vez que o requisito principal é o sistema de injeção eletrônica”, afirma Roger Guilherme, supervisor de powertrain (sistema de câmbio e motor) da Volks.

Após muita pressão de departamentos como o de engenharia e de marketing, a alta cúpula da montadora finalmente deu o sinal verde para a construção do protótipo — um Gol com motor 1.6. Foi o início de uma guerra entre facções internas. “O carro ficou pronto, mas ninguém queria lançar”, diz Paulo César Kakinoff, diretor de vendas e marketing da empresa. “Alguns achavam que o protótipo parecia tão bom, tão espetacular, que só poderia haver algo errado.” Kakinoff e sua equipe partiram para uma estratégia de convencimento interno, com exibições públicas do carro na montadora e convites para testes nos arredores da fábrica em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

A perspectiva de lançamento do carro bicombustível da Volks provocou a reação quase imediata das concorrentes. Durante a inauguração de sua fábrica em Camaçari, na Bahia, a Ford exibiu um modelo Fiesta com motor bicombustível — queria ser reconhecida como a primeira montadora a lançar a novidade. O problema é que o carro usava tecnologia da americana Visteon, desenvolvida nos Estados Unidos e que não estava adaptada para o Brasil. Apesar da jogada de marketing, a Ford também não estava convencida da viabilidade da tecnologia. “As empresas estavam nitidamente divididas”, diz Alfred Szwarc, consultor da União da Indústria Canavieira, Única, para tecnologia de combustíveis. “A Volks comprou a idéia do flex. A GM também via com simpatia a inovação. A Fiat só observava, enquanto a Ford se manteve a distância. Já as montadoras francesas e japonesas eram contra”, diz.

O sinal de que o flex seria de fato viável foi dado no fim de 2002, quando a isenção de IPI para essa categoria de carros — que nem sequer existia oficialmente — foi aprovada. “O custo da tecnologia passou a ser zero”, diz Kakinoff. A Volks marcou a data do lançamento para a festa de seu cinqüentenário no Brasil, em março de 2003. A GM demorou três meses para fazer o lançamento. A Fiat, a dona da Marelli, lançou o primeiro Palio com sistema flex em setembro. A Ford, depois dos problemas com a tecnologia Visteon, recorreu à Marelli e lançou seu Fiesta bicombustível em outubro de 2004, mais de dois anos após a exibição do protótipo de Camaçari. Em seguida, foram as renitentes Peugeot, Citroën e Renault que aderiram à novidade, enquanto a Honda prepara o lançamento de seu primeiro Fit flex. Agora é a vez de o resto do mundo, com os Estados Unidos à frente, estender o tapete vermelho para o carro flex.

A cronologia do carro flex

Os principais marcos na criação do bicombustível

1973

Redução na produção provoca o choque do petróleo

1979

É produzido o primeiro carro a álcool no Brasil

1989

Fim do Proálcool e alta do preço do açúcar provocam colapso no abastecimento

1994

A Bosch exibe um Omega com tecnologia flex

2006

76% dos carros novos são bicombustível

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