Bernardo Cinelli
Um novo processo de fermentação alcoólica está sendo desenvolvido pelo programa de Engenharia Química da
COPPE/UFRJ.
O processo é uma combinação inovadora de uma tecnologia emergente denominada destilação por membranas (DM) com os fermentadores de produção de etanol. Através desse método seria possível aumentar o rendimento de conversão de açúcares em etanol, promovendo um aumento na eficiência do processo e assim maior produção de etanol.
Outro aspecto relevante da tecnologia é a redução na geração da vinhaça. O etanol, hoje em dia, é o principal biocombustível utilizado no mundo e sua tecnologia de produção está baseada em uma fonte renovável de energia e leva à redução significativa das emissões de gases, como aqueles responsáveis pelo efeito estufa, quando comparada com a utilização de combustíveis fósseis.
A produção de etanol no Brasil utiliza a cana-de-açúcar como matéria-prima. Até o ano de 2017, o Brasil segue como o segundo maior produtor mundial, com uma produção de 30,5 bilhões de litros na safra 2015/2016. A tecnologia utilizada para produzir o etanol é relativamente madura e envolve a fermentação de açúcares, como sacarose e glicose, provenientes da cana-de-açúcar, geralmente convertidos pela levedura Saccharomyces cerevisiae.
O maior produtor mundial de etanol segue sendo, desde 2005, os Estados Unidos, com o principal insumo para a sua produção o milho. Esse programa de etanol é mais recente e suas justificativas são a substituição de aditivos promotores de octanagem na gasolina automotiva e a redução das emissões de gases do efeito estufa.
A questão da vinhaça
Entretanto, apesar de todos os benefícios, a produção de etanol também levanta preocupações sobre o uso
excessivo de água e poluição, dentre outros impactos ambientais. Dentre os maiores desafios para esta indústria
podem ser mencionados: o aumento de eficiência do processo, promovendo desta forma maior rendimento na
produção de etanol e redução nos custos de produção, conciliados com as questões ambientais.
Existe uma série de debates sobre os principais riscos ambientais resultantes dos métodos e processos de produção utilizados, que está especialmente associado com a grande geração da vinhaça. A vinhaça é o efluente gerado durante a etapa de destilação, sendo esta produzida em grandes quantidades e apresenta um enorme poder poluidor.
Este efluente é composto basicamente por 93% de água e 7% de sólidos, apresenta coloração escura, com pH ácido,
altos níveis de sais dissolvidos e altas taxas de compostos orgânicos. Apresenta ainda temperatura elevada,
alta corrosividade, alto teor de potássio e quantidades significativas de nitrogênio. A produção média de vinhaça
na destilaria de cana está em uma faixa de 10 até 15 litros por litro de etanol produzido, o que representa um
enorme volume de efluente para tratamento ou descarte.
Para se ter uma ideia, em 2016, foram gerados no Brasil mais de 300 bilhões de litros de vinhaça. Até os anos 1980, a vinhaça era lançada diretamente em rios, poluindo a água em cada época da colheita. Hoje em dia, tal disposição é proibida em todo o país e a “fertirrigação”, que é o uso da vinhaça nos canaviais visando à fertilização do solo, se aplicada adequadamente, é a principal forma de seu uso.
Entretanto, os custos de disposição são elevados devido ao grande volume de água que deve ser transportado
até às áreas de cultivo.
Aumento de rendimento
Na maioria das usinas, o teor final de etanol no interior do fermentador é limitado pela tolerância ao combustível. O próprio produto da reação, o etanol, possui um efeito inibidor sobre o microrganismo, limitando muitas
vezes a eficiência do processo. Como consequência, os processos convencionais de fermentação utilizados na
indústria de etanol limitam a quantidade de açúcar fornecida, muitas vezes diluindo com água, para manter o
teor de etanol dentro dos fermentadores em níveis abaixo da inibição.
Ao final de cada batelada, cerca de 8% a 10% de etanol são obtidos. Portanto, a utilização de um processo acoplado de remoção contínua do etanol produzido no meio fermentativo reduz significativamente o poder inibitório na atividade metabólica do microrganismo, assim obtendo um melhor desempenho do processo com aumento na eficiência da fermentação.
Existem algumas técnicas que podem ser aplicadas com esta finalidade, dentre elas o uso de um sistema de separação por membranas. Dentre as tecnologias de membranas avaliadas no estudo, a mais
promissora foi a destilação por membranas (DM).
A tecnologia de membranas
A DM é uma tecnologia emergente que vem chamando muito a atenção dos setores de tecnologia nos últimos
anos, despontando hoje em especial na aplicação para dessalinização como uma alternativa promissora para a
destilação convencional e osmose inversa.
Na construção do módulo de DM, foram utilizadas membranas de fibras poliméricas produzidas no próprio laboratório da COPPE. A membrana atua como um filtro, com milhares de poros micrométricos que permitem a passagem preferencialmente do etanol em relação aos demais componentes presentes na dorna de fermentação.
O etanol é mais volátil do que a água e, assim, esse líquido obtido após a passagem pela membrana, denominado
de permeado, pode estar até 5 vezes mais concentrado em etanol. Ou seja, as membranas ficam continuamente
removendo o etanol de dentro da dorna, enquanto esse está sendo produzido. Neste caso, torna-se possível uma
integração entre a produção e a remoção do etanol de forma contínua.
A intensificação de processos
A intensificação de processos oferece uma possível solução que aumenta a competitividade das indústrias,
tornando os processos industriais mais eficientes, com maior produtividade e ambientalmente amigáveis. A recuperação de produtos in situ é uma forma de integração de processos em que a formação e a separação do
produto ocorrem em um mesmo reator, através de uma combinação de remoção do produto e retenção de células,
levando a produtividades e rendimentos mais elevados, possibilitando ainda o funcionamento contínuo do
processo.
Distingue-se entre os métodos de separação dentro do reator (submerso); e fora do reator (externo),
no qual o sistema de separação e recuperação é localizado em um circuito externo. Mais ainda, com a integração
e imersão do sistema de separação dentro do reator de produção de etanol, tem-se como consequência inerente
uma minimização na geração da vinhaça, tendo em vista que esta é gerada durante a separação convencional por
destilação.
Neste caso, com este novo processo, o etanol é removido de dentro do reator através da membrana e
a água presente no efluente é parcialmente conservada no sistema, minimizando esta geração. A minimização na
geração de efluentes líquidos ainda está alinhada com uma nova tendência global, denominada de “zero liquid
discharge” ou ZLD. Este é um conceito de processo que busca trazer benefícios tanto para as indústrias e órgãos
municipais, bem como para o meio ambiente, trazendo ganhos econômicos e sem a geração de efluente para
disposição. Os sistemas ZLD buscam empregar as mais avançadas tecnologias de tratamento de efluentes para
purificar e reciclar praticamente todo o efluente produzido, visando ainda atender aos requisitos de disposição e
reuso de água.
O paralelo com a tecnologia de MBR
Embora seja inovador o uso dessas membranas para esse tipo de aplicação, o sistema proposto se assemelha com
os sistemas já existentes e bem estabelecidos de MBR (do inglês “membrane bioreactor”), amplamente utilizados
em tratamento de efluentes municipais. A tecnologia de MBR pode ser definida como um processo híbrido
que combina um reator biológico à tecnologia de membrana, sendo sistemas em que os módulos de microfiltração
ou ultrafiltração funcionam como uma barreira, retendo a biomassa e removendo uma água mais limpa.
Os módulos comerciais de MBR apresentam membranas planas ou em fibras e os módulos podem ser internos ou
externos ao tanque biológico. Assim, todo o desenvolvimento realizado para MBR nos últimos 30 anos pode ser
aproveitado para esse novo conceito de DM submerso em dornas de fermentação. Especialmente com relação
à configuração dos módulos, empacotamento e propriedades mecânicas.
Usualmente tais membranas apresentam um tempo de vida útil de aproximadamente 5 anos.
Vantagens econômicas
A tecnologia apresenta um potencial aumento na produção anual de etanol para uma mesma capacidade instalada
de cana. Esse aumento na produção de etanol se deve ao aumento no rendimento de conversão dos açúcares em etanol durante a fermentação.
De acordo com resultados obtidos em escala de laboratório, estudos com simuladores de processo indicaram um potencial aumento de até 3% na produção de etanol anual das usinas. A tecnologia propõe ainda uma drástica redução na geração da vinhaça, de até 70% no volume produzido.
A diminuição na geração da vinhaça se traduz em valioso benefício econômico, que está associado aos
custos de logística desse efluente. Importante ressaltar que a quantidade em massa que entra de sais fertilizantes
provenientes da cana, como potássio, sai em sua totalidade pela vinhaça.
Logo, junto da redução do volume gerado de vinhaça, há equivalente aumento na concentração dos sais fertilizantes da vinhaça destinada ao campo. Portanto menor o volume de água será transportado juntos com a vinhaça, que estará mais concentrada. Somente com a redução do volume, os ganhos para uma usina de médio porte, com capacidade de moagem de 2 milhões de toneladas de cana por ano, poderiam chegar a mais de R$ 4 milhões por ano.
Ainda mais, a aplicação de vinhaça, como é realizada convencionalmente, não está otimizada, na prática sendo aplicada no máximo dos limites legais visando diminuir ao máximo os custos com seu transporte. Assim, com uma
vinhaça mais concentrada, poderia se cobrir uma área maior de acordo com a quantidade ótima necessária de
potássio pelo solo.
Dessa forma, poderiam ser reduzidos ainda os gastos com fertilizantes, e o benefício econômico seria ainda maior.
Os resultados indicaram ainda uma economia potencial no consumo de água. Essa redução na captação
de água, devido à redução de seu consumo no processo, reduziria a demanda de licenças adicionais industriais, as chamadas outorgas para captação de água.
Além de ser um benefício econômico, vale destacar mais uma importante vantagem do ponto de vista do impacto ambiental. Os resultados da análise econômica preliminar indicaram que esta rota tecnológica apresentou viabilidade econômica dentro das premissas estabelecidas.
Considerações finais
Existem muitos desafios no desenvolvimento dessa tecnologia e as mudanças geradas no processo que precisam ser
superadas. Todavia, com base no estudo preliminar, a oportunidade de aplicação da tecnologia de DM nesta indústria mostrou ser extremamente promissora, com ao menos dois grandes benefícios evidentes: o aumento na produção do etanol e a redução na geração da vinhaça.
Para ressaltar a importância de tecnologias que buscam a redução dos custos com a logística da vinhaça, diversas tecnologias foram apresentadas e testadas nos últimos anos, mas sendo a concentração a principal delas. Hoje existem diversos fornecedores para unidade de concentração de vinhaça, e no Brasil existem instalações fornecidas pela Citrotec e Dedini, por exemplo.
Além do elevado valor de CAPEX, a tecnologia tem enfrentado dificuldades quanto à durabilidade, devido a alta corrosão causada pela acidez e alta temperatura da vinhaça.
Portanto, a solução integrada com membrana, com um investimento igual ou inferior, seria possível não somente para trazer o benefício da redução da vinhaça, mas também para aumentar a produção de etanol.
Embora a tecnologia de DM ainda seja muito recente e em fase de desenvolvimento, existem indicativos de viabilidade técnica e econômica, com benefícios claros para a indústria, atacando justamente um dos principais problemas apontados pelo setor. P
ode ainda haver uma sinergia com demais alternativas, como a biodigestão da vinhaça, à qual as barreiras de custo tem sido um forte impedimento. Entretanto, a produção de biogás a partir do uso de vinhaça concentrada teria menor volume de reator e possivelmente menores custos.
Existem sinais de mudanças no cenário do setor sucroenergético. As usinas devem, e já estão, cada vez
mais atentas a essas oportunidades, não só pela possibilidade de aumentar suas receitas e redução dos
custos, mas principalmente como uma questão de sobrevivência da própria empresa no setor.
A questão da vinhaça é de grande interesse e um dos pontos mais relevantes apontados. Apesar da maturidade existente do processo de produção de etanol, ainda existem oportunidades de inovação no processo de primeira
geração. Como qualquer investimento em pesquisa e tecnologia, existe custo e existe risco.
Para superar essas barreiras, além de incentivos, é necessário principalmente um fator organizacional, que enxergue essas oportunidades e consiga lidar com os riscos associados.
Iniciativas como o programa RenovaBio, que busca assegurar previsibilidade para a participação dos
biocombustíveis, com objetivo justamente de impulsionar o desenvolvimento tecnológico e a inovação,
poderá impulsionar novos investimentos para o setor.
O processo de fermentação acoplado com a tecnologia de DM, com a finalidade de remover continuamente o
etanol produzido visando um aumento da eficiência de conversão e menor geração de efluente no processo,
apresenta uma grande oportunidade para a indústria do etanol de primeira geração, tendo também um potencial
fantástico para a remoção de outros bioprodutos: tanto na remoção do etanol celulósico ou o butanol, por exemplo.
Espera-se que futuras parcerias possam levar esse desenvolvimento adiante.
Até que a tecnologia atinja a escala industrial, deve-se implementar um projeto piloto para avaliar e aprimorar, em maior escala, o processo aprovado em laboratório, com potencial de desenvolver uma tecnologia nacional com todo o sistema produzido no Brasil.
Artigo publicado originalmente no Boletim de Conjuntura do Setor Energético da FVG Energia de janeiro de 2018. Clique aqui para acessar o texto no original.