A avaliação de custos e benefícios para o Brasil da reeleição de George W. Bush é matéria bem mais complexa do que sugerem as declarações dos que viram no resultado algo claramente favorável aos “interesses nacionais”. Os fundamentos para tal avaliação não vão muito além de “afinal, os democratas são mais protecionistas do que os republicanos”. A noção de “interesses nacionais” que poderia amparar essa afirmação não é nem economicista. É ainda mais estreita. Resta saber se a audácia da certeza não repousa exatamente na fragilidade da análise.

Oreforço da postura unilateralista e intervencionista do governo republicano poderá afetar outros aspectos das relações Brasil- EUAque nada têm a ver com comércio, tais como fiscalização internacional das instalações de enriquecimento de urânio ou repressão ao tráfico de drogas e complicações amazônicas. Mesmo se fosse verdade que a vitória de Bush é benéfica aos interesses comerciais brasileiros, não seria tarefa simples decidir como ponderar argumentos econômicos e políticos para alcançar conclusão inequívoca sobre os efeitos da eleição sobre o Brasil. A verdade é que, do ponto de vista brasileiro, nem mesmo há base concreta para a crença de que os republicanos são menos protecionistas do que os democratas.

Foram os democratas que, desde o fim do século 19, defenderam a redução da proteção nos EUA, pois nos seus distritos congressuais a importância das indústrias exportadoras era maior do que a das indústrias que competiam com importações. Nos distritos republicanos, ocorria o inverso. Só quando estes contrastes ficaram menos marcados é que se iniciou a liberalização comercial em 1934, em pleno New Deal. Nas décadas posteriores, entretanto, houve grande redução da coesão partidária emrelação a temas comerciais. Recentemente, essa tendência começou a ser revertida, com os democratas mostrando coesão crescente na oposição à liberalização comercial. É isso que parece servir de base às visões equivocadas sobre a posição dos dois partidos quanto à política comercial dos EUA. Enquanto os distritos democratas são preponderantemente urbanos e industriais, os republicanos controlam a maior parte dos distritos onde os interesses agrícolas são importantes.As exportações brasileiras para os EUA são afetadas por picos tarifários, cotas tarifárias, subsídios à produção agrícola, medidas antidumping e fitossanitárias. Os produtos afetados são: suco de laranja, açúcar (concorrendo com açúcares de cana, beterraba e milho), fumo, carne de frango, carne bovina, algodão, calçados, caminhões, soja, carne de porco e aço. É possível identificar em que condados a produção competitiva com as exportações brasileiras é relevante e, com base nisso, determinar em que distritos congressuais tendem a preponderar os interesses protecionistas. O mapa do protecionismo nos EUA, anexo, é um dos resultados de meu projeto de pesquisa sobre a economia política da proteção, desenvolvido no Banco Interamericano de Desenvolvimento. Para cada Estado dos EUA, foi calculada a proporção de distritos protecionistas em relação ao total de distritos. Foram considerados dois grupos de Estados. O primeiro inclui os Estados nos quais mais de 20% dos distritos são protecionistas. No segundo grupo, os Estados nos quais a proporção é inferior a 20%. Há coincidência marcante entre o mapa do protecionismo e o mapa do voto em 2004: Estado protecionista votou em Bush, mas não necessariamente em um congressista republicano. Há exceções, concentradas em Estados menores, tais como Nevada, Maine, Delaware e mesmo Maryland. O protecionismo têxtil na Carolina do Sul afeta pouco as exportações brasileiras. Por isso, o Estado não aparece como protecionista. As discrepâncias importantes são no Rust Belt – Pensilvânia e Illinois, e em menor medida Michigan –, pois o interesse protecionista no aço não coincidiu com o voto republicano. Os exportadores dos EUA são contrapeso modesto aos lobbies protecionistas. Concentrados em produtos elétricos, eletrônicos e material de transporte estão principalmente na Califórnia, no Texas e na região dos Grandes Lagos. Em qualquer caso, a economia política do protecionismo mostra que, na prática, se dá mais peso ao emprego perdido, em face da competição de importações, do que ao emprego a ser ganho com a expansão das exportações. Fica a pergunta. Quais são mesmo os argumentos para mostrar que os republicanos são menos protecionistas do que os democratas? A evidência indica que, do ponto de vista brasileiro, os EUA são bastante protegidos e os interesses protecionistas são pilares essenciais do governo republicano. Marcelo de Paiva Abreu é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge e professor titular do Departamento de Economia da PUCRio, em licença sabática.