A ofensiva preparada pelo governo brasileiro na Organização Mundial do Comércio (OMC), que resultou em processos vitoriosos ao país – no caso do algodão contra os Estados Unidos, e no açúcar contra a União Européia -, foi permeada por resistências por parte do próprio governo no meio do percurso, já que o país teve de enfrentar ameaças veladas dos poderosos EUA e UE, que sugeriam retrocesso nas rodadas das negociações internacionais com os países em desenvolvimento se os contenciosos fossem levados adiante.
Na prática, as disputas começaram antes mesmo de serem encaminhadas à OMC. Havia resistência dentro de setores do governo, como o Itamaraty, que argumentava que esses processos poderiam atrapalhar os acordos multilaterais em curso. Outras dificuldades também atravessaram o caminho. “O Ministério da Agricultura não estava habituado a ações desse tipo”, diz Pratini de Moraes, que era ministro da Agricultura quando o Brasil decidiu entrar com as ações.
A participação da iniciativa privada foi fundamental nestes processos, uma vez que os empresários foram os responsáveis pelo suporte financeiro dessas disputas. O governo Lula contribuiu, empenhando-se em dar prosseguimento às ações na OMC.
Segundo Pratini, as discussões sobre as ações na OMC começaram antes mesmo da Rodada de Doha. “Passamos um ano discutindo a entrada [na OMC]. Havia setores que não eram favoráveis”, relembra o ex-ministro. Essa resistência se devia, de acordo com Pratini, ao temor de um fracasso nas ações.
De acordo com ele, a lentidão das negociações multilaterais sobre subsídios, acesso a mercados e restrições sanitárias, e seus “resultados muito limitados”, foram os fatores que motivaram o país a entrar com os pedidos de abertura de painel para o açúcar e o algodão.
“As resistências foram frutos do pioneirismo desses processos”, ressalta Pedro de Camargo Neto, à frente da Secretaria de Produção e Comercialização do ministério na época e mentor da elaboração das disputas do algodão e do açúcar. Inicialmente, o país pretendia questionar também os subsídios dos EUA à soja, mas a recuperação dos preços internacionais do grão engavetou a pretensão. “Teríamos forte resistência se entrássemos com o processo da soja na OMC, porque questionaríamos subsídios indiretos. No caso do algodão, questionamos a Farm Bill [lei agrícola americana], que envolve benefícios diretos, mais fáceis de serem comprovados”, diz Camargo Neto.
Comparado ao processo do açúcar, o processo do algodão foi mais complicado, lembra Camargo. Primeiro porque envolveu a Cláusula de Paz (extinta no final de 2003). A primeira barreira no processo foi argumentar que os EUA estavam ferindo a cláusula, uma vez que foram superados os limites de subsídios fixados em 1992. Segundo porque contestava a “Farm Bill”. Tudo isso tornou o processo mais caro, afirma Hélio Tollini, diretor da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa). Os produtores de algodão acreditaram na causa e bancaram US$ 2 milhões no processo. “No açúcar, questionamos a política do setor açucareiro europeu, não a PAC [Política Agrícola Comum]”, afirma Camargo.
Satisfeito com o resultado dos dois painéis, Pratini diz que sempre teve “absoluta convicção de que o Brasil ganharia” os dois processos. “Nunca tive dúvidas porque havia consistência nas argumentações”, afirma Pratini de Moraes, que hoje preside a Abiec (reúne exportadores de carne bovina).
Uma das áreas do governo em que não havia consenso sobre as ações era a Camex (Câmara de Comércio Exterior). No entanto, assim que a Agricultura e a iniciativa privada mostraram que as argumentações contra os subsídios eram consistentes, a Camex passou a apoiar a decisão. “Tínhamos absoluta certeza de que os subsídios à exportação e os mecanismos de apoio interno agridem os mercados internacionais, impedem a formação adequada dos preços e representam prejuízo para os países produtores, principalmente os mais pobres”, diz o ex-ministro.
O Itamaraty contesta que tenha resistido. “A demora, se houve, foi em necessidade de demonstrar que o Brasil estava sofrendo violações. Comprovadas as violações, entramos com os pedidos de consulta”, diz o embaixador brasileiro José Alfredo Graça Lima, que está em Portugal, e concedeu entrevista por telefone ao Valor. Graça Lima lembra que houve uma forte reação da UE de que os países em desenvolvimento perderiam com os processos, tentando desviar o foco da atenção. “Não houve esse tipo de preocupação por parte do Itamaraty”.
A disputa contra os subsídios ao açúcar na UE foi considerada pelo Itamaraty, desde o início, um caso muito mais fácil. Os diplomatas garantem ter apoiado a idéia desde sua apresentação. Bem diferente do caso do algodão, em que havia dúvidas sobre o necessário apoio do setor privado para contratação de consultores, e se considerava o caso mais complicado tecnicamente, por ser necessário provar que o subsídio americano provocava danos aos produtores brasileiros, e não estava incluído entre os subsídios protegidos pela Cláusula de Paz. O setor privado queria contratar economistas brasileiros para sustentar a disputa, enquanto os diplomatas consideravam mais eficaz o caminho finalmente seguido, o de usar a assessoria de um especialista dos EUA.
O Itamaraty reconhece uma demora no processo contra o subsídio ao açúcar, provocada, porém, pela necessidade de compatibilizar os argumentos brasileiros com os dos outros dois países, Austrália e Tailândia, envolvidos no painel. Essas diferenças chegaram a ser exploradas pela UE, que acusou Brasil e Tailândia de não se entenderem a respeito dos efeitos dos subsídios. Os dois países, em argumento aceito pelos árbitros da OMC, responderam que suas argumentações eram complementares, e não excludentes.
“O Brasil aprendeu que precisou ter ousadia para bancar os processos na OMC e defender os seus interesses”, afirma Camargo. “Sempre acreditei que o país fosse ganhar. Mas, perder não seria problema”, diz Camargo, lembrando que o Brasil perdeu o processo de lácteos aberto pela UE contra o país. Segundo ele, o país poderá entrar com um novo processo, contra a política americana de subsídios para o arroz.