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Primeiro leilão de usinas prevê lotes de 4,5 mil MW

O governo já definiu as premissas do primeiro leilão de usinas que será feito dentro das novas regras do setor elétrico. Segundo informação da ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, nesta entrevista ao Valor, ele está previsto para ocorrer entre os meses de setembro e novembro de 2004 e prevê a licitação da construção de lotes de 4.500 megawatts (MW) de energia, em que serão necessários investimentos de US$ 4,8 bilhões. Todas as usinas deverão estar concluídas até 2009.

Os projetos que deverão constar nesta primeira lista serão definidos pela nova estatal do setor, ainda a ser criada, a Empresa de Pesquisa em Energia (EPE). Ela ficará encarregada dos estudos técnicos, de viabilidade econômico-financeira e ainda da primeira etapa do licenciamento ambiental. Segundo a ministra, a fonte de receita desta nova empresa será a venda destes projetos para o governo e também para a iniciativa privada.

Uma outra licitação, de 13 lotes de linhas de transmissão, com 2.895 quilômetros de extensão e investimentos de US$ 593 milhões está prevista para março. Segundo Dilma Rousseff, os estudos destas linhas foram feitos pela agência reguladora do setor, a Aneel.

A ministra disse ainda que, ao contrário de avaliações que vêm sendo publicadas, no novo modelo a Aneel não perderá espaço. Ela afirmou que a sua função fiscalizadora é “estratégica”. Além disso, a Aneel continuará operacionalizando os leilões de concessão. ” Nós achamos que é nossa função fazer o planejamento para a licitação e dizer quais são as usinas que entram e o que sai. Agora, a operacionalização da licitação não quero para mim, não. Isso é da Aneel. E nunca pretendi tirar isso da Aneel”.

“Quem investiu foram os grandes consumidores. Quem não investiu foram as distribuidoras”. A ministra garantiu que não não pretende estatizar o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que hoje tem caráter privado. Mas disse que o governo indicará o novo presidente, que passará a ter mandato fixo de quatro anos, prorrogáveis por mais quatro.

Nesta entrevista, a ministra refutou as críticas de que seu modelo é estatizante. Ela afirma que conta com a participação dos grandes consumidores privados como Vale do Rio Doce, Alcoa e Votorantim nos próximos leilões de usinas, juntamente com as estatais. Dilma conta ainda com a participação das empresas de geração ligadas às distribuidoras, como a CPFL Geração, apesar da proibição do novo modelo para a auto-contratação (self-dealing). Com a auto-contratação, as distribuidoras têm direito de compra da energia de usinas do mesmo grupo controlador a preços mais caros, com o direito do repasse ao consumidor.

Apesar da proibição do self-dealing nos projetos futuros, Dilma disse que manterá a permissão da auto-contratação em acordos já existentes como os da Light e da Eletropaulo, para não caracterizar quebra de contrato.

A ministra disse que planeja um novo índice setorial para os contratos entre geradoras e distribuidoras. A elaboração deste novo índice foi encomendada à Fundação Getúlio Vargas (FGV). Para os contratos de correção das tarifas dos consumidores, no entanto, permanecerá o IGP-M, que é cláusula contratual.

A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: O presidente Lula disse que apagão é coisa do passado. Para que seja realmente coisa do passado, quanto o país precisa investir de geração de energia elétrica por ano?

Dilma Roussef: Depende. Hoje, o país tem sobra de energia…

Valor: O primeiro leilão já sob as novas regras está previsto para quando?

Dilma: Setembro de 2004. É o que nós esperamos. A partir disso. Entre setembro e novembro. Nós estamos achando que vamos licitar 4.500 megawatts. Vai necessitar de um investimento de US$ 4,80 bilhões. É mais ou menos isso por ano.

Valor: A necessidade, do Brasil, portanto, é de acréscimo de 4.500 MW com investimentos de quase US$ 5 bilhões ao ano?

Dilma: Pode diminuir, pode aumentar. Tem que fazer ajuste sempre.

Valor: E leilões de transmissão?

Dilma: Nós vamos fazer um em março, com investimentos de US$ 593 milhões. Serão 13 lotes com 2.895 quilômetros no total.

Valor: Esses 4.500 megawatts são uma projeção da Aneel?

Dilma: Não, nossa mesmo. A Aneel não faz essas projeções sozinha, não.

Valor: Esses 4.500 megawatts são para quando?

Dilma: Para 2009.

Valor: Qual é sua expectativa de crescimento da economia e do consumo de energia?

Dilma: Nós já estamos trabalhando, apesar de ter energia sobrando. Nós fizemos duas projeções de crescimento, uma com 3,5% em 2004, que é a mesma do Ministério do Planejamento, e outra com 4% do PIB a partir daí. Nesta hipótese a gente precisaria de energia extra mesmo se todas as usinas já licitadas entrarem em operação, exceto algumas que nós achamos que têm muito problema ambiental. Aí precisaríamos de energia extra ainda dependendo de nova licitação para operar em 2009. Se crescer menos que isso, não precisa.

Valor: As principais críticas quanto ao modelo do setor elétrico divulgado quinta-feira é que ele seria estatizante e intervencionista. Como a senhora espera atrair o capital privado?

Dilma: O governo acha que o modelo vai estimular o investimento privado por uma questão muito simples. Porque ele é um modelo estável. Nós não temos a pretensão de acabar com o risco. Nós temos a pretensão de reduzir o risco. Eu acho que o que esse modelo fez foi estabilizar as condições propícias para o investimento. Quando criamos contratos de longo prazo, quando conectamos a concessão ao fornecimento via contrato de longo prazo, asseguramos a licença ambiental antecipadamente, estabilizamos o risco.

Valor: Como a geração será competitiva?

Dilma: Quando nós estipulamos geração competitiva, asseguramos para o investidor que ele não vai ser passado para trás, que ele vai poder ter certeza que, se ele ganhou, não vai ter ninguém ganhando mais que ele indevidamente, ele perdendo. Acho que a realidade demonstrou que o que desestimula é o modelo anterior.

Valor: As distribuidoras estão dizendo que com o fim da auto-contratação (self-dealing), o governo está jogando fora a possibilidade delas, privadas, investirem em geração…

Dilma: Sabe por que, não é? Porque quem investiu no Brasil nos últimos anos foram os grandes consumidores de energia .

Valor: Quem?

Dilma: Votorantim, Alcoa, Vale…

Valor: Eles poderão participar das novas licitações?

Dilma: Óbvio. Não vai sobrar só geradora estatal coisíssima nenhuma. Aliás, quem não investiu muito foram as distribuidoras.

Valor: Ainda assim, as estatais vão voltar a investir. E como fica o contrato com o FMI (Fundo Monetário Internacional)?

Dilma: Não tem nenhum lugar no acordo com o FMI que diga que a gente não pode investir. Em setembro, nós fizemos um leilão de linha de transmissão onde venceram três grupos privados e quatro parcerias público-privadas. Nessas parcerias público-privadas estavam as estatais federais e a Cemig. Sempre houve parceria com estatais, mesmo quando as federais foram proibidas de investir. Aí, os grandes consumidores fizeram parceria com as estaduais como a Cemig, a Copel e a Celesc. As usinas de Machadinho, Barra Grande, Foz do Chapecó, Serra dos Cavalinhos, Ceran foram arrematadas por parceria público-privada. E , por exemplo, a EDP, passa o dia inteiro querendo que Furnas entre com 30% em Peixe Angical.

Valor: Por falar em Cemig e Copel, como ficam as empresas verticalizadas agora?

Dilma: Desverticaliza.

Valor: Tem prazo para isso acontecer?

Dilma: Tem, um ano.

Valor: Nesse problema de auto-contratação, como ficam os contratos já existentes como o da Light e da Eletropaulo?

Dilma: Contrato é contrato. Não tem solução. Tirando a hipótese de você fazer uma ruptura legal no país, o que é um absurdo, eles serão mantidos.

Valor: Concorda com as críticas de que a Aneel saiu enfraquecida desse modelo?

Dilma: É uma temeridade achar que nós vamos enfraquecer a Aneel. Se nós enfraquecermos a agência, nós estaremos nos enfraquecendo.

Valor: Não é o que parece…

Dilma: Veja bem: a função regulatória e fiscalizadora da Aneel no nosso modelo é estratégica. O que nós estamos dizendo é que as funções do poder concedente não são da Aneel, de fazer lista de empreendimentos, de dizer quais são as usinas que entram e as que saem. Se algum dia a agência assumiu o papel de planejamento, foi contra os termos da lei que a criou. Mas eu particularmente acho que ela nunca fez planejamento.

Valor: Será alterado o caráter privado do Operador Nacional do Sistema Elétrico?

Dilma: O ONS é um autorizado. Nós não vamos interferir no caráter do ONS. Mas ele terá que cumprir algumas coisas. Primeiro, acabou a história de haver agentes privados no controle da diretoria do ONS. Nem o agente, nem o governo vão controlar. Também gostaria muito de saber onde há estatização nisso porque eu estou dando um mandato a essa diretoria, com estabilidade no cargo.

Valor: Qual a diferença com relação ao que existe hoje?

Dilma: Hoje, não tem mandato nenhum. E será o seguinte: quatro anos com recondução para mais quatro. Nos primeiros quatro meses, você pode ser demitido. Dos cinco componentes, três nós indicamos, dois os agentes indicam.

Valor: O governo vai ter maioria…

Dilma: O governo não vai ter maioria, não. O mandato dá independência. Se é assim, eu tenho maioria da Aneel? Se é assim, a Aneel foi estatizada.

Valor: E o presidente da ONS, como será decidido?

Dilma: Hoje o ministério tem poder de veto no ONS. Agora, não estamos pedindo poder de veto. Mas nós, ao indicarmos os cinco, um deles é o presidente. Nós indicamos o presidente. A partir daí ele tem autonomia.

Valor: Qual será função da nova estatal? O planejamento?

Dilma? Não. Quem faz planejamento é a União. Essa empresa faz estudos para mim e não faz planejamento.

Valor: Qual será a receita desta empresa?

Dilma: Nós contrataremos o serviço dela e pagaremos por isso. Mas ela também vai cobrar por outros serviços. Vai fazer, por exemplo, também estudo sobre biodiesel, biomassa, gás…

Valor: Será uma empresa pública?

Dilma: Isso. A função de estudo e pesquisa para planejamento energético não pode ser privada e nem de uma empresa pública já existente. Por exemplo, me perguntaram por que eu não dei essa função à Eletrobrás. Claro que não, porque senão terá o viés de interesse dela.

Valor: E por que não uma autarquia?

Dilma: Porque quero salários adequados. Como vou contratar alguém deste nível para pagar R$ 4 mil?

Valor: Haverá um novo índice para os reajuste de tarifa?

Dilma: Nós não estamos mexendo na parte tarifária da distribuição. Toda a parte de tarifa da distribuição está mantida. Até porque isso integra o contrato de concessão de distribuição de todas as distribuidoras privadas. O ministério nunca teve ilusão a esse respeito.

Valor: E não vai mudar nada no índice? Um índice de preço específico para esse setor?

Dilma: Na área de geração, que não está em nenhum contrato de concessão que tem que ser IGP-M, nós estamos discutindo com a Fundação Getúlio Vargas, que está apresentando um índice específico setorial. Achamos que a FGV tem credibilidade suficiente. Se não for usado esse índice para reajuste de contrato, nós vamos usá-lo como referência de variação de custos. A gente vai submeter isso à audiência pública.

Valor: Atualmente é como?

Dilma: Tem de tudo, e tem até IGP-M.

Valor: Definição tarifária vai continuar com a Aneel?

Dilma: Sem a menor alteração.

Valor: Como fica o Mercado Atacadista de Energia?

Dilma: O MAE vai operacionalizar essa contratação de energia no médio e no longo prazo. Toda a energia nova será de longo prazo. O MAE vai transferir todas as funções dele para a câmara de comercialização (“pool”).

Valor: E como ficarão os preços de curto prazo?

Dilma: Nós vamos mantê-los, mas a variação não será mais de R$ 4 a R$ 680 o megawatt hora (MWh), como já foi. Agora, o piso será de R$ 16, que é o preço da hidrelétrica mais cara, Itaipu, e o teto atingirá a térmica mais cara, que hoje está em R$ 350. Mas a tendência é cair porque nós estamos revendo esse critério. Passará a ser a térmica estável mais cara e não uma emergencial a diesel, como é hoje. No nosso ponto de vista, térmica emergencial não pode formar preço.

Valor: Qual seria então esse teto?

Dilma: Para uma térmica a gás acredito que em torno de R$ 100, no máximo R$ 120 o MWh. Não mais que isso.

Valor: Como funcionará essa nova lógica de leilões?

Dilma: Terá o planejamento com contestação por técnica e por preço, onde o planejamento faz os estudos, o inventário, o licenciamento ambiental e o projeto de viabilidade econômico-financeira de todos os empreendimentos hídricos e também de térmicas. Entregamos isso ao conhecimento de universidades, órgãos técnicos, consultorias e empresas, que poderão fazer críticas.

Valor: Como o governo definirá o tamanho do mercado?

Dilma: Será solicitado às distribuidoras os dados de quanto elas acham que o seu mercado vai crescer. E também aos consumidores livres.

Valor: E se as projeções de mercado das distribuidoras não se confirmarem?

Dilma: Existirá uma margem de ajuste que será de 3% a 5% do mercado. Mais do que isso, não. Senão é um samba do crioulo doido.

Valor: E o distribuidor será penalizado por esse erro?

Dilma: Não, ele vai ser penalizado porque terá de comprar depois energia mais cara. Mas ele pode ainda trocar energia de quem está sobrando com quem está faltando.

Valor: Os novos contratos serão assinados entre os os geradores e o “pool”?

Dilma: Não. Aí é que eu acho muito engenhosa a nossa solução. O que faz o “pool”? Ele organiza o rateio dos contratos. Mas não substitui as partes contratantes. O contrato será entre a geradora com cada uma das distribuidoras, proporcional ao mercado delas. O “pool” não bota o dedinho dele nesses contratos porque não assume risco de ninguém. Nós estamos resolvendo o problema de falta de contrato. O “pool” só padroniza os contratos, com critérios muito claros.