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Bicombustível? Só se for de fábrica

Poder rodar com gasolina ou álcool, puros ou misturados, em qualquer proporção, vem agradando muita gente. Prova disso é o espantoso e constante aumento de vendas de carros novos equipados com motor bicombustível. Nos primeiros cinco meses do ano foram vendidos 109.267 unidades, volume 490,2% superior ao consolidado em igual período do ano passado e que já ultrapassa em 24.709 unidades o total vendido em todo o 2003. A participação desse tipo de modelo no mercado nacional atingiu 24,1% em maio.

Apostando nesse nicho de mercado – que deverá fechar o ano com cerca de 30% de participação e dobrar a participação até 2006 – as montadoras aproveitam para apostar no bicombustível. A única das quatro marcas mais vendidas que ainda a não conta com um modelo desse tipo é a Ford. Porém, para não ficar para traz e perder fatia no bolo, a empresa já prepara para o início do segundo semestre a chegada de seu primeiro “flex”. Apesar de não confirmar, deverá ser o Fiesta 1.6 o primeiro “flexível” da marca norte-americana. Segundo rumores de bastidores, o carro virá com sistema Magnetti Marelli. Entretanto, devido ao suspense da Ford, alguns já apostam que virá um modelo tricombustível.

Mas apesar do leque de opções de carros flexíveis aumentar a cada dia, o bolso do consumidor brasileiro não anda bem. Fatores como juros altos, aumentos constantes de preços, aliados ao baixo poder de compra criam situação inviável para a compra do sonhado carro novo. Junte-se a isso os altíssimos custos de manutenção e o preço exorbitante da gasolina e a realidade piora ainda mais. Nesse contexto surgem algumas oficinas independentes, que aproveitam o desespero do consumidor, prometendo a transformação do carro a gasolina em bicombustível.

Pela maneira como essas pequenas empresas explicam o processo de transformação até parece simples. A primeira oficina consultada afirmou que para efetuar a transformação é necessário apenas remapear o chip no módulo de comando do motor e introduzir a partida a frio. De acordo com a empresa consultada, nenhum outro componente do carro tem de ser trocado e a qualidade do serviço é similar à oferecida pelos modelos originais de fábrica. Apesar da simplicidade do processo, que demora apenas duas horas e custa quase R$ 400, a oficina rejeita modelos Ford e os Celta VHC. Segundo um funcionário da empresa, os automóveis Ford vem com módulo blindado, impedindo o acesso, e o chip do Celta é muito difícil de ser remapeado.

Já a segunda oficina consultada, destacou a necessidade da troca da bomba de combustível, além do remapeamento do chip e da colocação da partida a frio. Um funcionário, que classificou o serviço como de primeira qualidade, descartou a possibilidade de problemas futuros e disse oferecer garantia de até dois anos no módulo e de seis meses nos componentes envolvidos no processo de transformação. Nesta oficina, porém, o custo da transformação sobe para R$ 500, sendo R$ 380 do chip e R$ 120 da partida a frio, e o tempo de duração da conversão é de um dia. Para se ter uma idéia do tamanho deste mercado paralelo, a empresa efetua aproximadamente 600 transformações/mês.

Uma terceira oficina afirmou ser necessário reprogramar o chip, substituir a bomba de gasolina pela de álcool e introduzir a partida a frio. O preço do serviço, segundo um mecânico, fica em torno de R$ 600 e demora cerca de 7 horas para ser efetuado. A garantia oferecida é de três anos para o módulo e seis meses para os componentes envolvidos no processo de transformação.

Apesar de apresentar o mesmo trabalho das outras duas oficinas consultadas, esta terceira oficina afirmou que a transformação pode ser feita em qualquer automóvel, independente da marca. Entretanto, um funcionário da empresa disse que alguns componentes do carro, caso já estejam desgastados, precisam ser trocados para que futuramente a transformação não afete o desempenho do veículo. Além da possibilidade de abastecer o carro com gasolina e álcool, o mecânico promete ganho de potência de até 10%.

Mas nem tudo é tão fácil como parece. O diretor de pesquisa e desenvolvimento da Magnetti Marelli, Gino Montanari, não aprova esse tipo de serviço. Segundo o executivo, os componentes dos automóveis movidos a gasolina não têm preparo para resistir ao álcool. “Em curto prazo o veículo pode até rodar com álcool no tanque, porém em poucos meses o resultado é desastroso. Motor, velas, cabeçote, válvulas, injeção eletrônica, bicos injetores, entre outros componentes, que são preparados somente para a utilização da gasolina, acabam se decompondo.”

De acordo com o executivo, modificar o chip dos carros de hoje também é impossível. “O software é codificado e tem uma elaboração eletrônica codificada. Portanto é inviolável.” Além disso, segundo ele, este tipo de adaptação clandestina pode comprometer a segurança dos passageiros e aumentar a emissão de poluentes dos carros para nível absurdo. “Trata-se de um crime ambiental,” afirma.

Na esteira de Montanari, o gerente da divisão de engenharia e fiscalização da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), Omero Carvalho, também classificou este tipo de transformação como fraudulenta. De acordo com o engenheiro, em pouco tempo, devido à danificação dos componentes, a segurança dos passageiros passa a ser bastante comprometida.

Mas Carvalho comenta que é difícil de coibir essa prática. “Enquanto não for implementada a Inspeção Veicular fica difícil fiscalizar. Acredito que a partir do ano que vem, com a efetivação da inspeção, poderemos combater este tipo de serviço.” De acordo com o engenheiro, o elevado orçamento necessário para a inspeção sair do papel será terceirizado por uma empresa a ser eleita por meio de concorrência pública. Já o serviço de fiscalização será de responsabilidade da Cetesb.

Apesar do carro transformado em pequenas oficinas não atender aos padrões de emissões e segurança permitidos por lei, legalizar a situação não é tarefa difícil. Basta apenas pagar a quantia de R$ 97 e esperar três dias para ter em mãos o documento alterado, conforme a reportagem apurou.