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Reinventar a reforma agrária

O MST declarou que, agora, é o latifúndio, e não mais o governo, seu grande inimigo. Logo em seguida, realizou duas invasões de terra: na Fazenda Abrahão, com 78 hectares, e na Fazenda Esperança, com 65 hectares. Duas pequenas propriedades rurais de Taubaté (SP). A palavra não coincidiu com a prática. Um contra-senso total.

É curioso o mundo das idéias. Alguns conceitos são tão fortes que permanecem imperando na cabeça das pessoas, mesmo sem correspondência com a realidade.

Viram chavões, palavras de ordem repetidas ao vento. Latifúndio é um bom exemplo. Originário do latim, significando os grandes domínios da aristocracia na Roma antiga, o latifúndio representa, no Brasil, a grande propriedade improdutiva. Nascido nas sesmarias coloniais, o conceito de latifúndio está associado ao atraso e ao coronelismo. Terreno onde a oligarquia agrária ostenta sua dominação política.

Dividir o latifúndio e romper com o imperialismo resumia, nos anos 1960, a melhor receita contra o subdesenvolvimento. Assim nasceu o distributivismo agrário, para transformar a “terra de exploração” em “terra de produção”.

Nessa luta, a burguesia nacional e o proletariado eram aliados dos camponeses, contra o inimigo comum: a oligarquia latifundiária.

Os tempos mudaram. Nos últimos 40 anos a agricultura se modernizou, o País se industrializou. Cresceram as metrópoles, esvaziou-se o campo. O capitalismo está globalizado. Emprego, e não mais terra, passou a ser o grande desafio do futuro. Porém – é impressionante – a questão agrária brasileira continua sendo tratada da mesma forma. A realidade é outra, mas a proposta de reforma agrária é a mesma.

Por que o MST invade pequenos sítios em São Paulo? Qual o sentido de invadir fazendas produtivas, como o MST faz em Mato Grosso do Sul? Por que não ocupar os imensos latifúndios, os verdadeiros “inimigos da humanidade”, conforme vociferaram seus líderes? A resposta é simples: os latifúndios desapareceram. É simplesmente desconcertante!

Acontece que a modernização da agricultura transformou os antigos latifúndios em empresas rurais, grandes, porém produtivas. Ampliaram-se as áreas cultivadas, incluindo as pastagens, principalmente nos cerrados do Centro-Oeste. De um patamar de 50 milhões, a safra nacional de grãos ultrapassa os 100 milhões de toneladas, batendo recordes sucessivos de produtividade. Nas carnes, logo o Brasil será o maior exportador mundial. Em açúcar e álcool, café e suco de laranja, é campeão mundial.

A tecnologia agropecuária permitiu ao País equiparar-se aos maiores produtores do mundo, concorrendo para valer no mercado globalizado. A balança comercial do setor é altamente superavitária, da ordem de US$ 18 bilhões. Sem o vigor da agropecuária, comprova o IBGE, o crescimento do PIB nacional estaria negativo. Os dados da economia agrária são conhecidos. E elogiados. Ora, latifúndio não provoca isso!

Some-se à tecnologia o pavor dos agricultores às invasões de terras: nos últimos tempos, quem é louco de deixar terra parada? Ademais, somente no governo Fernando Henrique, 20 milhões de hectares foram desapropriados ou arrecadados para reforma agrária. No combate à grilagem de terra, cerca de 48 milhões de hectares foram excluídos do cadastro rural. Não tinham dono, eram latifúndios “fantasmas”.

O resultado, digno de comemoração, indica que os famosos latifúndios do passado cederam lugar à terra produtiva, particularmente no Centro-Sul do País. Terra improdutiva, hoje, existe somente no cadastro do Incra, onde se encontram dois tipos esquisitos de “latifúndios”: imensas áreas de florestas naturais na Amazônia e imóveis impróprios para uso agrícola do Nordeste.

Somam, talvez, 100 milhões de hectares. Considerá-los, entretanto, terra ociosa significa teimar contra a agronomia e a ecologia.

A pressão do MST, por um lado, e a transformação dos latifúndios, por outro, motivam uma disputa insana no cotidiano da reforma agrária. Técnicos do Incra, à procura de áreas para desapropriação, passaram a vistoriar excelentes fazendas de gado, procurando brechas legais para desqualificá-las como produtivas. Se a reserva florestal da propriedade não estiver averbada na escritura, por exemplo, ela pode ser caracterizada como “área inexplorada”. No caso do rebanho, ano de seca afeta a lotação das pastagens, que viram “improdutivas”. O Incra está fabricando latifúndios no papel.

Assim ocorre em Mato Grosso do Sul.

Hoje, na luta contra a pobreza rural, os latifúndios se assemelham aos moinhos de vento de dom Quixote: meras ilusões. Quem cria esse engodo é o paradigma que domina o pensamento agrário desde os anos 60. Naquela época, no Brasil rural, a terra ociosa e o sistema oligárquico explicavam a miséria. Hoje, com o País urbanizado, a produção impera e a raiz da miséria está no desemprego. Quer dizer, no próprio capitalismo. E não em sua negação, o latifúndio.

Talvez a eleição do Lula venha, paradoxalmente, permitir à sociedade perceber que a reforma agrária está superada pela História. Na era Fernando Henrique pareceria um disparate tal afirmação. O PT iria acusar o governo de fazer o jogo da oligarquia, influenciado, talvez, pelo Consenso de Washington!

Agora, com a oposição no governo, todos perceberão que o verdadeiro inimigo da reforma agrária é ela própria. A idéia da reforma agrária, correta no passado, tornou-se obsoleta. Por isso os assentamentos não vingam. A culpa não está no governo, mas na receita do distributivismo da terra. Novas teorias para o desenvolvimento rural são exigidas pela economia e pela sociedade pós-industrial. O foco muda, da posse da terra para a geração de emprego. Decididamente, é necessário reinventar a reforma agrária.

Xico Graziano, agrônomo, deputado federal (PSDB-SP), foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996/98)- [email protected]

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