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Visão de mestre

Luiz Gonzaga Bertelli é uma das personalidades que fazem a história do setor sucroalcooleiro acontecer. Também não é para menos. Advogado, jornalista e administrador de empresas, Bertelli é presidente executivo do CIEE (Centro de Integração Empresa/Escola), diretor do Departamento de Infra-Estrutura Industrial da Fiesp/Ciesp, consultor de empresas do setor petrolífero e de produção de açúcar e álcool. É, igualmente, coordenador da Câmara Superior de Política Energética da Associação Comercial de São Paulo e membro do Instituto de Energia da USP, dentre outras funções a que se dedica atualmente.

Sua vida é marcada por grandes desafios e conquistas. Em função de necessidades econômicas teve de buscar precocemente o constante aperfeiçoamento profissional, dedicando-se a outras áreas da atividade econômica. Desta forma, tornar-se-ia um profissional moderno e polivalente. Chegou a lecionar na tradicional Faculdade Casper Líbero, na área de jornalismo empresarial, e na Faap, no curso de administração e comunicação empresarial.

Após trabalhar na área financeira e bancária, ingressou no mundo da petroquímica e do gás combustível em 1964. De lá para cá suas responsabilidades só aumentaram, tornando-se, hoje, um “expert” nessas áreas.

Foi atuando na área de energia que Bertelli teve contato com o setor sucroalcooleiro, participando, juntamente com outros companheiros, da criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool) e desenvolvimento das primeiras destilarias autônomas de álcool no país, dentre outras participações.

Nesta entrevista exclusiva, Bertelli demonstra profundo conhecimento do setor e uma visão conjuntural da realidade brasileira. Confira!

JornalCana – É verdade que o senhor está escrevendo, atualmente, um livro sobre o setor sucroalcooleiro?

Luiz Gonzaga Bertelli – Sim. O livro encontra-se em fase de conclusão. Escrever uma obra sobre o setor é um antigo sonho, porque a atividade tem muitas verdades e falácias a serem registradas.

O livro fará uma retrospectiva da evolução histórica, científica, tecnológica e econômica da agroindústria canavieira, desde os seus primórdios. Mostra, igualmente, que existe falta de uma maior interação entre os industriais do açúcar e do álcool, além de uma forte interferência governamental na produção e nos preços dos produtos, dentre outros aspectos comentados. Enfim, faço um vôo histórico e panorâmico e aponto um cenário de perspectivas do que poderá acontecer no século vindouro.

JC – Por falar em futuro, parece que está havendo um grande volume de plantio de cana. Como o senhor vê esta questão?

Bertelli – De uma forma geral, as usinas apenas estão recompondo as suas áreas de plantio, que deixaram de receber o tratamento adequado em decorrência da crise dos dois últimos anos.

Contudo, está surgindo um fato novo. Em função da recuperação dos preços da cana-de-açúcar, outras regiões estão substituindo as lavouras dedicadas à laranja e ao café pela cana.

Dirigindo usinas, aprendi que a expansão dos canaviais para quem está na área é quase que uma decorrência natural. Primeiro, porque tais indústrias detêm tecnologia, equipamentos, mudas disponíveis, então é bem mais fácil expandir áreas com cana-de-açúcar do que investir em novas culturas. Ademais, outros plantios, como o café e a laranja, estão mais sujeitos às modificações climáticas e a operações de preço no mercado externo, dentre outros fatores.

JC – Com esta retomada no plantio, o setor não corre o risco de enfrentar mais um superávit na produção?

Bertelli – Eu não acredito. Primeiro, porque no Brasil há um mercado fantástico, sendo um campeão no consumo interno do açúcar, em torno de 45 quilos percapita /ano. Além disso, trata-se de um alimento energético barato. O brasileiro tornou o açúcar um alimento fundamental na sua dieta. A ciência médica vem revelando que, desde que ingerido com racionalidade, não existe no açúcar nenhum inconveniente à saúde da população.

JC – O setor do açúcar e do álcool trabalha a sua imagem, assim como outros setores econômicos?

Bertelli – Infelizmente não. E enquanto isso, outros países produtores o fazem, como é o caso dos australianos, que para reconstruírem a imagem do açúcar da cana, fizeram um esforço fantástico, com uma campanha de propaganda institucional notável, a fim de recuperar o mercado. E aqui, raramente, são efetuados investimentos na comunicação e “marketing” dos produtos da cana. Só para se ter um exemplo, a liberação dos chamados açúcares químicos (edulcorantes sintéticos) ocorreu em função de um fantástico “lobby”, liderado pelos laboratórios internacionais, procurando classificar os adoçantes na categoria de alimentos, junto ao governo brasileiro, o que foi conseguido, a partir do ano de 1976. Nas nações mais desenvolvidas, os adoçantes artificiais estão registrados como medicamentos e para seu consumo é necessária a participação médica.

No caso do Brasil, os adoçantes acabaram sendo liberados para a venda, inclusive, nos supermercados, sem qualquer limitação. Propaganda enganosa tem influenciado, principalmente a juventude, ao exagerado consumo de tais adoçantes. Nas nações mais adiantadas, os adoçantes artificiais são comercializados tendo na sua embalagem a faixa vermelha de advertência sanitária e bula terapêutica. Por outro lado, os pesquisadores ainda não puderam estabelecer, com exatidão, as conseqüências geradas pelo uso indiscriminado dos adoçantes químicos.

No passado, o setor sucroalcooleiro, inclusive as entidades de classe, investiam muito mais na sua imagem. Por dificuldades econômicas, deixaram de fazê-lo. Contudo, acredito que com a gradativa recuperação da economia setorial, haverá alterações nessa conduta.

JC – O Brasil deve permitir a importação de álcool, metanol e de MTBE neste momento?

Bertelli – Só se houver absoluta falta do álcool combustível para o consumo. Vejo que a importação é uma maneira de fazer com que o preço do álcool caia. Isto soa como uma represália injustificável, porque o governo tem outras formas de controlar o mercado, sem precisar usar deste expediente.

O setor, apesar da proclamada liberação dos preços, continua sendo controlado pelo Estado, a partir do momento que se tem como concorrente uma indústria petrolífera que atua na forma de um verdadeiro monopólio de fato e altamente protegida pelo governo. Já para a agroindústria canavieira sabemos que as regras não são equânimes.

A Petrobrás, por exemplo, não esconde seus desejos de transformar-se numa grande empresa energética. É o seu grande sonho, acalentado desde a sua fundação. O desenvolvimento da indústria petroquímica no Brasil, por exemplo, somente aconteceu a partir do momento que se criou uma parceria entre a Petrobrás e estrangeiros. Nesse cenário, a petroquímica floresceu e, hoje, o Brasil constitui um dos maiores produtores de petroquímicos em todo o mundo.

A Petrobrás contínua vendo o setor como um grande concorrente e desejosa de substituir os quase 300 mil barris/diários de álcool comercializados no País, pela gasolina extraída do petróleo. Trata-se de um mercado, que provoca um grande desejo no setor petrolífero e da distribuição dos derivados.

Do outro lado, o setor canavieiro tem dificuldades em estabelecer parcerias com a indústria do petróleo. Contudo, o setor precisa celebrar alianças e parcerias com a Petrobrás e distribuidoras privadas, a fim de evitar a competição predatória e os movimentos que acontecem com regularidade, contrariamente ao desenvolvimento do álcool combustível.

JC – Esta seria uma das soluções para trazer estabilidade para o mercado de álcool?

Bertelli – Sim, seria mais uma tentativa. A Petrobrás é composta de dirigentes competentes, administradores e técnicos capacitados e quando ela percebeu que a privatização do setor petrolífero iria ocorrer, organizou-se para esta nova fase. Hoje, se vê uma Petrobrás presente no mundo, inclusive alugando refinarias, envolvendo capitais nacionais e internacionais.

No passado, a indústria do açúcar e do álcool chegou a criar uma empresa: a Brasálcool – uma organização particular onde o Estado, ao lado da iniciativa privada, aportaria recursos financeiros para ser um banco de fomento. Seria um verdadeiro BNDES da indústria sucroalcooleira. Infelizmente, não houve a continuidade. A Brasálcool conseguiu viabilizar alguns projetos, hoje modernas indústrias açucareiras.

Mas no geral, sempre verificamos entraves ao desenvolvimento do setor sucroalcooleiro, em virtude dos preconceitos existentes em relação ao papel do Estado e das estatais. Falta um grande poder moderador, que venha interagir os diferentes setores energéticos da nacionalidade. A nação brasileira, ao retomar o seu desenvolvimento sustentável, irá precisar de todas as fontes energéticas disponíveis (petróleo, hidroeletricidade, bagaço da cana, álcool, biomassa, carvão, madeira e outras).

JC – Fala se também numa possível importação de metanol, sendo assim, o senhor não acredita que as portas podem se abrir para futuras instalações destas indústrias no Brasil, assim como ocorreu com o MTBE?

Bertelli – O metanol é produzido de gás natural de carvão ou na indústria petroquímica. No mundo todo é condenado o uso do metanol, devido a sua toxidade. A sua distribuição no Brasil, na forma de mistura (MEG), visava evitar o desabastecimento do álcool hidratado, mas não obstante, a indústria do petróleo deseja incrementá-lo junto às refinarias instaladas.

Temos todas as condições (solo, recursos humanos, clima, tecnologia e equipamentos) para produzir os combustíveis líquidos renováveis, inclusive competitivos ao petróleo importado e nacional. Falta somente determinação e vontade governamental.

JC – O senhor tem uma explicação para a alta nos preços do petróleo?

Isto pode significar uma oportunidade para o álcool combustível brasileiro?

Bertelli – Com o recente aumento do petróleo, ronda novamente o Brasil uma nova e assustadora crise do petróleo. A produção nacional não é ainda suficiente para abastecer o mercado interno (cerca de 40% de importação na média anual). Os produtores do poderoso cartel aumentam os preços por motivos essencialmente econômicos ou políticos. Não existe falta de oferta do petróleo, como acontecera há duas décadas. Não obstante, o Brasil não tem reservas abundantes de petróleo e as existentes estão localizadas em águas profundas no oceano, de difícil e cara extração. Corremos o risco de exaurí-las, rapidamente, com futuros arrependimentos. Deveríamos incentivar a produção de álcool da cana-de-açúcar, com tecnologia, recursos humanos e capitais brasileiros. O Proálcool é reconhecido internacionalmente. O álcool anidro já tem custo inferior ao da gasolina. Falta sensibilidade e planejamento governamental. “O tempo do petróleo farto e barato acabou”, sustenta a revista americana Scientific American, em recente trabalho publicado.

JC – Quais as futuras projeções do petróleo e do álcool no mercado interno?

Bertelli – As futuras projeções de produção do petróleo e do álcool combustível dependem, essencialmente, de uma política energética. Há décadas que o Brasil não tem um planejamento norteador da produção/demanda dos diferentes energéticos. Desta forma, a fim de não faltar os combustíveis (derivados de petróleo e álcool combustível), vamos precisar de investimentos nacionais e estrangeiros, bem como da justa remuneração dos capitais aplicados.

JC – O país tem carência de um planejamento energético?

Bertelli – Sim. Hoje só para se ter uma idéia, não sabemos quanto a nação vai consumir de álcool e gasolina nos próximos anos. Através do adequado planejamento, seria possível saber, por exemplo, quanto rigorosamente temos que importar de petróleo.

JC – E qual a posição do governo?

Bertelli – Atualmente o governo parece não dar incentivos aos pequenos projetos. Para se ter uma idéia, existem programados 43 projetos de usinas térmicas a gás natural. Desses, poucos saíram do papel. Tratam-se de mega- projetos. Pequenas térmicas, utilizando o bagaço ou mesmo gás, poderiam ser construídas perto de grandes empresas consumidoras de energia, como é o caso dos “shoppings” e indústrias têxteis, o que proporcionaria uma economia fantástica.

Desde o ano de 1997, através de lei federal, foi criado o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, a fim de estabelecer a planificação do setor energético brasileiro, inclusive, privilegiando as fontes limpas e nacionais. Contudo, até o momento o CNPE não conseguiu organizar-se, bastando atentarmos para a situação do mercado de carros a álcool, que agoniza, lentamente. No futuro, o álcool deverá ser usado, quase que exclusivamente na mistura da gasolina, sem a necessidade da produção do hidratado, usado nos veículos automotores, com grandes vantagens para a economia de divisas, ao meio-ambiente e à saúde da população. Receamos, inclusive, que a partir da próxima década não tenhamos mais carros a álcool circulando no Brasil, por falta de adequada política governamental, o que seria desastroso.

JC – As unidades produtoras deveriam priorizar os investimentos em cogeração de energia neste momento?

Bertelli – Sim. As tarifas elétricas são, nos dias atuais, remuneradoras. Além disso, é uma vocação natural das usinas de açúcar a produção elétrica. Primeiro, que seria desnecessário fazer os relatórios de impactos ambientais exigidos para a construção de térmicas movidas a bagaço, eis que as usinas açucareiras já os possuem. Segundo, que as unidades produtoras já têm um sistema ligado à distribuidora elétrica o que dispensaria a instalação de cabos condutores.

Uma outra vantagem é que as usinas produzem o máximo de eletricidade no período da seca das hidroelétricas. Tratam-se de fatores altamente positivos. Além disso, os investimentos são infinitamente menores com a modernização das caldeiras e turbo-geradores das usinas açucareiras.

Para tanto, precisamos, também, de uma linha de crédito especial, via BNDES, para financiar as usinas que querem otimizar o seu sistema elétrico e produzirem, adicionalmente, eletricidade.

JC – Mas há essa possibilidade?

Bertelli – Bem, a iniciativa existe. Não está regulamentada, ainda. Depois de muitos esforço, conseguimos fazer na FIESP-CIESP com que o BNDES não estabelecesse mais restrições ao financiamento às térmicas movidas a bagaço. Contudo, até agora, não tenho notícias de um financiamento efetivo do BNDES neste sentido. Está faltando, portanto, uma diretriz governamental para criar um programa de financiamento para a modernização das usinas sucroalcooleiras.

JC – Elas não poderiam investir por conta própria?

Bertelli – Em sua maioria não, porque os problemas enfrentados pelo setor nos últimos anos deixaram as empresas descapitalizadas. Agora, quem tem recursos próprios disponíveis está investindo, como as usinas paulistas Vale do Rosário, Santa Elisa e outras.

JC – A cogeração merece destaque, neste momento?

Bertelli – Sim. Inclusive estamos acompanhando com muito interesse. Existe um “lobby” fantástico, por conta de corporativismo, que ainda prevalece no setor elétrico, contrariamente à cogeração do bagaço. As agências reguladoras não têm a total isenção para tratar da problemática.

O Estado de São Paulo, inclusive, tem um grande potencial e, de imediato, pode responder, com uma oferta de eletricidade de cerca de 5.000 MW, usando a tecnologia tradicional.

JC – Esse interesse pela energia cogerada do bagaço não é passageiro, apenas para suprir o atual déficit brasileiro?

Bertelli – Comprar energia é um bom negócio para as empresas porque elas está se transformando num notável insumo, principalmente para o país resgatar o seu desenvolvimento sustentável. Só que o setor de açúcar e álcool precisa ser competente na elaboração dos seus contratos de fornecimento, bem como na estruturação dos consórcios, entre usinas, distribuidoras de eletricidade e consumidores finais.

JC – Qual o tipo de projeto de cogeração de energia que oferece maiores garantias de retorno financeiro para as unidades produtoras, levando em consideração o estágio atual de seu parque de geração e as condições oferecidas pelo mercado?

Bertelli – As unidades produtoras poderiam montar cooperativas fornecedoras e armazenadoras de bagaço e criar, também, complexos produtores de eletricidade.

Mas tanto quem vende a eletricidade, como quem compra, ainda tem dúvidas. Primeiro, porque as distribuidoras de energia têm uma certa desconfiança em relação ao industrial da cana, no sentido de que possa, eventualmente, faltar bagaço, ou que destine o subproduto da cana a outras atividades.

Isto ocorre também com a empresa consumidora de eletricidade. Elas têm acentuado receio de que os contratos não sejam louvados pelas usinas açucareiras. Mas o preconceito vai se afastando, a partir do momento em que as empresas fornecedoras de energia estão sendo privatizadas. Um exemplo é o trabalho que a CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz) vem realizando nos dias atuais, junto as unidades produtoras de açúcar e álcool, ao criar condições efetivas de parcerias e negociações.

JC – O senhor é conselheiro da Fundação Brasileira de Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). Como a CEBDS vê o setor?

Bertelli – A ênfase que o CEBDS concede à cana-de-açúcar, infelizmente, não é igual àquela concedida, por exemplo, ao setor do petróleo, papel e celulose, mesmo porque a nossa participação na entidade é ainda pequena. Acredito que a Fundação poderá dar uma contribuição muito maior na defesa da produção e do uso do álcool combustível, em face das suas vantagens em relação, principalmente, ao combustível fóssil.

JC – E sobre a profissionalização do setor, o que o senhor tem a dizer a respeito?

Bertelli – De forma geral, as empresas do setor ainda investem pouco na formação de recursos humanos e na sua profissionalização. Precisaria investir mais em treinamentos, estágios de estudantes e na profissionalização das organizações.