Bolívar Moura Rocha
A saúde da indústria brasileira do etanol oscilou ao longo do tempo entre dois extremos: ora a escassez de álcool minava a confiança do consumidor, ora grandes excedentes deprimiam preços e ameaçavam a solidez da cadeia produtiva. O observador menos atento poderia crer superado esse movimento pendular: o carro flexfuel permite ao consumidor fugir para a gasolina em caso de preço elevado ou escassez do álcool, enquanto a demanda externa parece ser capaz de absorver volumes de produção sempre crescentes. Além disso, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) monitora dados de demanda e oferta e com isso permite ao governo dosar o porcentual de aditivação da gasolina, que por sua amplitude funciona como potente regulador do mercado, assegurando seu equilíbrio.
A confiança e a tranqüilidade que esse quadro confere são ilusórias e poderiam provar-se más conselheiras. A consolidação dessa boa fase exige assegurar abastecimento adequado do mercado doméstico de forma permanente; e recomenda fortemente afastar riscos de interferência no suprimento de mercados no exterior. As duas condições estão, naturalmente, ligadas – e o fato é que não estão asseguradas.
Com efeito, a consolidação de forte demanda externa pelo etanol brasileiro poderia drenar o suprimento do mercado doméstico, o que, por sua vez, tenderia a levar o governo a refrear ou impedir exportações.
Restrições à exportação seriam o caminho mais curto para comprometer nossa credibilidade como fonte de suprimento do etanol. Na verdade, dada a importância do Brasil como produtor, restrições à exportação minariam a própria credibilidade dessa fonte energética. É importante afastar esses riscos e isso é possível com combinação de instrumentos legais e regulatórios. As medidas deveriam incluir a formação de estoques de segurança, a migração parcial da comercialização de álcool no mercado doméstico para regime contratual e a liberdade de exportação.
A constituição de estoques obrigatórios não seria medida nova e tampouco é idéia brasileira. Em 1974, na esteira da primeira crise do petróleo, membros da OCDE celebraram o International Energy Program Agreement, que os obriga a manter estoques de combustíveis correspondentes a 90 dias de consumo doméstico como forma de reduzir a vulnerabilidade a choques de oferta.
No Brasil, a idéia tornou-se lei com a terceira crise do petróleo (1991). Ocorre que os estoques nunca foram instituídos, embora leis posteriores, incluindo a própria Lei do Petróleo (1997), tenham continuado a prevê-los.
Estoques obrigatórios seriam, no entanto, apenas um colchão para situações extremas. A depender da intensidade da demanda externa, é certo que não seriam suficientes para garantir o abastecimento doméstico. Daí a importância de medida complementar, mais abrangente. Trata-se da instituição de regime contratual de comercialização de álcool. Hoje, o produto é adquirido pelas distribuidoras em transações no mercado spot.
Como forma de garantir o suprimento, parte da demanda passaria obrigatoriamente a ser atendida sob contratos de longo prazo. A ANP submeteu a consulta pública, em agosto de 2006, minuta de resolução precisamente nesse sentido. O assunto não evoluiu e, de qualquer forma, a norma teria pés de gesso: o artigo 238 da Constituição federal exige que a venda e a revenda de combustíveis sejam tratadas em lei. A providência, portanto, é dupla – criar base legal para que a agência possa regular o assunto e adotar a regulamentação competente.
A solidez da indústria do etanol exige, por fim, liberdade de exportação. Eventual interferência em contratos de suprimento de mercados no exterior representaria hoje atentado contra a credibilidade dessa indústria semelhante ao que foi para o Proálcool, no final dos anos 80, a falta de álcool hidratado nos postos. Fecharia mercados exportadores e, por extensão, inibiria novos investimentos no Brasil. Dada a primazia do objetivo de assegurar o abastecimento doméstico, a ameaça de interferência governamental nas exportações estará sempre presente.
Instrumentos não faltam: do imposto de exportação de até 150% a restrições administrativas, como aquelas previstas pela Portaria 22 da Secex, de agosto de 2006, que submete exportações de álcool a procedimentos especiais. Dito de outra forma, garantia de que o governo não interferirá só haverá, na prática, se o mercado estiver permanentemente abastecido. Daí ser indispensável a conjugação de estoques e sistema contratual.
Para que este artigo não pareça alarmista esclareço: o risco de desabastecimento que justifica essa discussão decorreria de demanda externa expressiva, que não se confirmará de um dia para o outro. No entanto, planejamento exige antecipar cenários – e este que nos ocupa não é improvável, sobretudo porque produtores e governo se vêm batendo precisamente por consolidar a demanda externa e, mais importante que isso, porque o aquecimento global e o objetivo de segurança energética tornaram dramaticamente prioritária, mundo afora, a busca por energias de fonte renovável. A implementação das medidas exige, é claro, engenho. É preciso não engessar comercialmente os produtores, não transferir risco excessivo de demanda para as distribuidoras, definir se o ônus pela formação de estoques deve ser compartilhado.
A agenda pode soar intervencionista, mas algo de controle e planejamento, desde que fruto de reflexão de qualidade, é claramente preferível a uma liberdade que, sobrevindo a crise, desande em improvisação. Trata-se de tarefa a ser compartilhada pelo poder público e pela cadeia produtiva, no interesse geral.
Bolívar Moura Rocha, sócio da Levy & Salomão Advogados, foi secretário-executivo do Conselho Interministerial do Açúcar e Álcool (Cima)
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