
A cana-de-açúcar desempenha um papel central na economia nacional, tendo gerado, em 2020, uma receita de cerca de US$ 8,7 bilhões em exportações. Desde 2010, o Brasil produz cerca de 700 milhões de toneladas de cana por ano, destinadas a diversos fins. Somos o maior exportador de açúcar do mundo, mas a planta também é amplamente utilizada para a produção de etanol e para a geração de energia a partir da queima do bagaço.
Dada a sua relevância econômica, é natural que os cuidados com as plantações sejam rigorosos e que qualquer ameaça seja tratada com preocupação. Uma das pragas mais conhecidas é a cigarrinha-da-raiz, pequenos insetos de coloração marrom-avermelhada que se alimentam da seiva da cana e, ao fazê-lo, transmitem toxinas que causam a queima das folhas e a perda de sacarose. Estima-se que a infestação possa causar prejuízos de até 36 toneladas por alqueire.
Dentre as espécies identificadas como cigarrinha-da-raiz, a Mahanarva fimbriolata e a Mahanarva spectabilis são as mais conhecidas por atacar as plantações. Entretanto, pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) da Unesp em Rio Claro e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) descreveram uma nova espécie de cigarrinha, que já foi identificada em lavouras de cana-de-açúcar em todo o país. A descoberta foi publicada no Bulletin of Entomological Research, da Universidade de Cambridge.
Docente do IB e um dos autores do artigo, Diogo Cavalcanti Cabral-de-Mello atua há 14 anos em um laboratório do Departamento de Biologia Geral e Aplicada dedicado ao estudo da evolução genômica de insetos. Mello diz que sua especialização na investigação da diferenciação genômica de insetos fez com que, há dez anos, recebesse o contato de empresas agrícolas. “Alguns produtores estavam enfrentando dificuldades para controlar a praga por meio de defensivos químicos, por isso pediram nossa ajuda”, diz.
“Os produtos que eles aplicavam não estavam se mostrando eficazes no combate às pragas, e isso gerava problemas. Cogitou-se que talvez os insetos tivessem desenvolvido resistência. Porém, uma pesquisadora da unidade da Embrapa em Araras formulou a hipótese de que talvez se tratasse de uma espécie diferente, e enviou amostras para serem analisadas por um grupo de pesquisadores da PUC-RS que atua na área de taxonomia de insetos”, conta ele.
A partir dessa suspeita, os grupos de pesquisadores da Unesp e da PUC-RS começaram a trabalhar em conjunto por duas vias: a análise morfológica, feita pelos cientistas Andressa Paladini e Gervásio Silva Carvalho, e a análise genética, conduzida por Mello. Cada equipe estudou as amostras fornecidas pela empresa e reuniu as evidências que terminaram por confirmar que se tratava de uma nova espécie.
As amostras colhidas junto aos produtores rurais foram comparadas com dados da M. fimbriolata e M. spectabilis para identificar semelhanças e diferenças genéticas. Graças a um marcador de DNA presente nas mitocôndrias, o docente da Unesp conseguiu fazer a distinção entre as espécies. “Em uma das espécies, esse marcador genético apresenta um padrão conhecido que é conservado, com pequenas variações. No caso de espécies diferentes, o marcador sofre variações maiores. Isso nos permite dizer que o indivíduo pertence a uma ou outra espécie”, diz.
Foram analisados mais de 300 indivíduos coletados entre 2012 e 2015 nas usinas de cana-de-açúcar. “Do ponto de vista genético, havia uma diferença marcante, mas que não era muito grande do ponto de vista quantitativo. Para estabelecer a diferenciação entre as espécies de insetos, não há um número estabelecido de variações do DNA. Isso vai depender do grupo em questão. No caso dos mamíferos, já está bem estabelecido. Insetos, porém, são um grupo muito mais diverso, e é difícil estabelecer os parâmetros”, diz Mello.
Daí a necessidade de uma análise morfológica complementar para que se constatasse que o que estava diante dos olhos dos pesquisadores era, efetivamente, uma espécie diferente. “Na taxonomia integrativa é importante adotar várias linhas de evidência. Embora a análise genética sozinha não assegure 100% de segurança para a avaliação, a união com outros dados reforça o fato de que se trata de uma nova espécie”, afirma o docente.
Ao analisar a morfologia das amostras, Paladini identificou uma diferença sutil, mas marcante, na genitália dos machos. A nova espécie possui uma parte da genitália bifurcada e pontiaguda, enquanto as outras apresentam um formato quadrangular não bifurcado. Essa característica inspirou o nome do inseto descoberto: Mahanarva diakantha, termo que significa “dois espinhos”.
Novas estratégias de combate à praga
Novas estratégias de combate à praga
A identificação da nova espécie é o primeiro passo para a elaboração de estratégias e produtos de controle adequados. “Quando se trata de escolher o produto para combater alguma praga, é possível que as substâncias utilizadas tenham ação direcionada para uma certa espécie. Mesmo que as espécies sejam próximas, o produto pode ser eficaz contra uma, mas não contra outra. Aparentemente era isso que estava sendo observado nas usinas”, explica Mello.
Após a descrição da nova espécie, a pesquisadora Andressa Paladini revisou coleções da Universidade Federal do Paraná, onde atualmente leciona, e identificou registros da década de 1960 de espécimes de M. diakantha classificados incorretamente como M. fimbriolata. Os próximos desafios envolvem compreender fatores biológicos, populacionais, taxas reprodutivas e análise da diversidade genética da nova espécie em relação a outras pragas. Também é preciso investigar amostras mais recentes. Aquelas usadas para o estudo datam do período 2012-2015, e o cultivo de cana-de-açúcar se modificou bastante desde então.
Odair Aparecido Fernandes, docente da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, câmpus de Jaboticabal, e líder do Centro de Pesquisa em Engenharia – Fitossanidade em Cana-de-Açúcar (Cepenfito), acredita que a nova cigarrinha não deve representar um risco expressivo às lavouras. “Embora não tenhamos identificado essa cigarrinha anteriormente, as ferramentas de controle biológico têm sido um sucesso. Então, quero imaginar que vamos continuar tendo sucesso. Mas pode ser que alguns resultados que não eram satisfatórios sejam explicados pelo fato de que se trata de uma nova espécie. Isso precisa ser melhor elucidado”, afirma.
Atualmente, o método de combate mais utilizado é o controle biológico feito com o fungo Metarhizium anisopliae. O fungo é cultivado em laboratório, geralmente sobre grãos de arroz, separado e misturado com água para aplicação nas plantações. Por ser um produto seletivo, ataca apenas insetos e não oferece riscos à cana ou ao ser humano. “Esse é um dos mais expressivos exemplos, em termos mundiais, de aplicação de controle biológico que apresenta eficácia elevada”, afirma Fernandes.
Mesmo assim, será necessário conduzir novas pesquisas com o M. diakantha a fim de avaliar o impacto das técnicas para combatê-lo. Mello passará a integrar o Cepenfito, onde pretende colaborar em estudos de controle de pragas. O pesquisador também orienta uma pesquisa de doutorado que pretende realizar a montagem genômica das três espécies de cigarrinha. Essa pesquisa, que abrange as áreas da ciência básica e o estudo de sua evolução, tem como intenção compreender o processo evolutivo de separação das espécies. Pela similaridade entre as espécies, a hipótese é que a separação ocorreu nos últimos 100 mil anos.
“O sequenciamento do genoma da espécie abre a possibilidade de desenvolvimento de uma agricultura de precisão, pois permite enxergarmos as variações existentes e estudar como isso afeta o controle de insetos. Assim, é possível desenvolver técnicas personalizadas para combater as diferentes pragas”, diz Mello.
Colaboração e Ameaças
Colaboração com o setor privado
Mello diz que os bons resultados alcançados pela pesquisa só foram possíveis graças à colaboração entre os grupos da Unesp, da PUC-RS e do setor privado. “Juntamos um pouco do que cada um sabia para podermos caminhar com precisão”, diz. “A universidade deve estar aberta a resolver problemas da sociedade. No nosso caso, conseguimos utilizar a ciência básica para colaborar na resolução de um problema aplicado.”
O próprio Cepenfito é um exemplo de cooperação público-privada, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Grupo São Martinho. O centro desenvolve atualmente 55 projetos na área de saúde vegetal e manejo de pragas, muitos deles em parceria direta com o setor produtivo e com as indústrias sucroalcooleiras.
Ameaças à cultura
As principais ameaças à cultura da cana-de-açúcar
Fernandes aponta que a cultura da cana enfrenta hoje duas grandes ameaças. A primeira é a síndrome do murchamento da cana, causada pela combinação de fatores abióticos, como seca e mudanças climáticas, e bióticos, como fungos e pragas. A doença provoca descoloração da colmo, perda de ceras e de água, levando ao murchamento da planta e podendo reduzir a safra em até 40%.
A segunda ameaça é o bicudo-da-cana, um besouro que vive no solo, próximo às raízes ou dentro do caule, alimentando-se do tecido vegetal, causando perdas de cerca de 25 toneladas por hectare. O inseto tem se espalhado devido ao método mecanizado de colheita, que mantém a palha da cana no solo — prática benéfica para a conservação da umidade, mas que também favorece a proliferação da praga.
De acordo com Fernandes, o controle dessas ameaças ainda é um desafio, devido à escassez de informações. “O Cepenfito tem buscado estreitar o diálogo com o setor produtivo para desenvolver estratégias de manejo mais eficazes. Os projetos em andamento atendem bem às demandas das regiões Centro-Sul e Sudeste”, diz.