Artigo exclusivo publicado na edição 358 da revista do JornalCana
A trajetória do uso do etanol na mistura na gasolina é um exemplo emblemático de como políticas públicas, inovação tecnológica e vantagens competitivas podem se unir para transformar a matriz energética e o uso da energia de um país.
Desde as primeiras experiências ainda na década de 1920 até a recente aprovação do E30, o Brasil construiu um caminho pioneiro no uso de biocombustíveis, impulsionando sua economia e reduzindo a dependência dos combustíveis fósseis. Nos anos 1920, o Brasil começou a explorar o etanol como combustível, aproveitando a abundância da cana-de-açúcar, destacando o pioneirismo da produção e uso no Estado de Alagoas.
Em seguida, já no ano de 1931, houve regulamentação para misturar 5% de etanol à gasolina. Contudo, esse movimento inicial foi interrompido por fatores externos, como a estabilização dos preços do petróleo e o advento da Segunda Guerra Mundial, que deslocaram a atenção para outras prioridades.
A virada decisiva ocorreu na década de 1970, em um cenário marcado pela crise do petróleo de 1973, que expôs a vulnerabilidade do Brasil, altamente dependente da importação de petróleo.
Com o objetivo de garantir segurança energética, estimular o desenvolvimento econômico e reduzir a balança comercial deficitária, nasce o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) em 1975.
O etanol, derivado da cana, despontou como uma alternativa estratégica por ser uma fonte renovável, de baixo custo, com tecnologia nacional e grande capacidade de geração de empregos.
O Proálcool tinha alvos claros: reduzir a dependência do petróleo importado, aproveitar os excedentes da agroindústria da cana, fomentar a indústria automotiva adaptada ao álcool e promover o desenvolvimento regional, especialmente no Nordeste e Centro-Sul.
A estratégia consistia inicialmente em utilizar o etanol anidro misturado à gasolina, com teores que aumentaram progressivamente ao longo dos anos, e em incentivar a produção e o uso do etanol hidratado em motores adaptados para esse combustível puro.
Auge e Declínio do Proálcool
Na década de 1980, o programa alcançou seu auge. Veículos movidos a álcool passaram a compor a maior parte das vendas de carros novos, chegando a aproximadamente 90% do mercado.
A mistura obrigatória de etanol na gasolina atingiu níveis entre 20% e 25%, reforçando a importância do biocombustível na matriz energética dos transportes.
No entanto, o setor enfrentou dificuldades quando houve o controle artificial dos preços da gasolina com o intuito de reduzir a inflação, tornando a produção do etanol menos competitiva, enquanto a queda dos preços do petróleo desestimulava o uso do combustível renovável.
Isso resultou em episódios de desabastecimento, perda de confiança do consumidor e retração do mercado.
O uso de etanol, principalmente o hidratado, entrou em declínio até o início dos anos 2000, mas um fator crucial para a retomada do etanol foi a desregulamentação do setor de combustíveis. Com a promulgação da Lei nº 9.478/1997, o Brasil rompeu com o monopólio da Petrobras, criou a Agência Nacional do Petróleo (hoje chamada Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e permitiu a liberalização do mercado.
Essa mudança institucional extinguiu o controle estatal direto sobre o etanol e inseriu o biocombustível em uma lógica de mercado, com livre formação de preços, competição e estímulo à inovação.
Retorno e Avanços Recentes
A nova base regulatória deu estabilidade ao setor e pavimentou o caminho para os veículos flex-fuel. A partir de 2003, com a chegada dos veículos flex ao mercado, o uso do etanol voltou a crescer significativamente.
A popularização dos carros flex incentivou ao aumento da produção de etanol e levou a uma estabilização da mistura de etanol anidro entre 20% e 25%, refletindo tanto a viabilidade técnica quanto as condições de mercado.
Destaca-se a publicação pela ANP da Resolução 67/2011 que, ao estabelecer o mecanismo de contratos de anidro, estabilizou o nível de mistura em 25% no Brasil e possibilitou a elevação do nível de mistura para 27% em 2015.
Em 2025, o Brasil avançou novamente ao aprovar a aplicação do E30, uma mistura de 30% de etanol anidro na gasolina, consolidando o compromisso com a descarbonização e a ampliação do uso de biocombustíveis.
Essa iniciativa, respaldada por estudos técnicos do Instituto Mauá e pela Lei do Combustível do Futuro (Lei 14.993/24), visa, de acordo com o Ministério de Minas e Energia, reduzir as importações de gasolina, promover investimentos estimados em R$ 9 bilhões, gerar cerca de 25 mil novos empregos e evitar a emissão de aproximadamente 1,7 milhões de toneladas de CO₂ anualmente.
Benefícios Ambientais e Perspectivas Futuras
O etanol anidro é uma bem-vinda opção frente a alternativas usadas anteriormente, de origem fósseis e tóxicas, sobretudo pelo seu aspecto ambientalmente positivo.
A legislação ainda autoriza, com base em testes técnicos, a possibilidade de o país avançar, futuramente, para o E35. Importante registrar que qualquer tipo de gasolina precisa de aditivo para garantir estabilidade e eficiência do combustível, fato que se acentua nos motores mais modernos.
Além do Brasil, cerca de 60 países adotaram a mistura de etanol. Para que esse próximo passo se concretize, o país ainda enfrentará desafios importantes. É preciso garantir que toda a frota, incluindo veículos antigos e motocicletas, seja compatível com misturas mais elevadas.
A história do etanol na gasolina demonstra como o Brasil conseguiu unir políticas públicas eficazes, ciência e tecnologia e um ambiente institucional sólido para criar uma alternativa energética limpa e economicamente viável. A ampliação da mistura com o E30 e os avanços rumo ao E35 reafirmam esse compromisso, posicionando o Brasil como referência global em biocombustíveis sustentáveis.