Artigo exclusivo publicado na edição 358 da revista do JornalCana
A bioenergia brasileira, ancorada historicamente no etanol e no biodiesel, e agora impulsionada pelo crescimento do biometano, do combustível sustentável de aviação (SAF) e do diesel verde (HVO), entra em uma nova era: a da certificação obrigatória das matérias-primas. Cada hectare cultivado, cada litro processado e cada tonelada exportada passa a carregar uma nova exigência: a comprovação formal de sua sustentabilidade.
Esse movimento não é passageiro nem regional. Ele é global, estrutural e aparentemente irreversível. A transição energética exige não apenas combustíveis renováveis, mas também que eles sejam produzidos com matérias-primas rastreáveis, livres de desmatamento, e com baixa pegada de carbono. A demanda por insumos certificados cresce rapidamente, sendo necessário estarmos preparados para ofertá-los em escala, com credibilidade e transparência.
A ascensão das certificações
Diversos esquemas de certificação já estão em operação, como o RenovaBio, o CORSIA e a recente RED III da União Europeia. Embora com objetivos distintos, todos compartilham como ponto central a rastreabilidade de origem da matéria-prima, conformidade ambiental, social e climática. Isso envolve toda a cadeia, do produtor rural à indústria, das cooperativas aos operadores logísticos, das usinas aos centros de coleta de resíduos.
Os requisitos incluem georreferenciamento das áreas de produção, comprovação de que não houve desmatamento após datas específicas, respeito aos direitos humanos e trabalhistas, além de inventários de emissões de gases de efeito estufa (GEE). Em outras palavras, não basta ser sustentável, é preciso provar, com evidências concretas, que se está em conformidade com os critérios pré-estabelecidos.
O Salto da Demanda por SAF e HVO
O salto da demanda
A Agência Internacional de Energia (IEA) estima que a produção global de SAF deve se multiplicar por 20 até 2030. No Brasil, projetos industriais de HVO e SAF já foram anunciados por empresas como Petrobras, Acelen e Riograndense. Cada planta demandará, em média, 1 milhão de toneladas anuais de matérias-primas certificadas, exigindo rastreabilidade rigorosa em todas as etapas da cadeia.
Isso representa uma oportunidade concreta para a cana, milho, soja, gordura animal, óleo de cozinha usado (UCO), macaúba, canola, camelina, entre outras culturas, certificadas. A demanda vem crescendo, principalmente por parte dos mercados europeus, norte-americanos e asiáticos. Mas há um desafio claro: a oferta atual de matéria-prima certificada ainda é muito inferior à demanda prevista.
Desafios e Oportunidades na Certificação no Campo
Desafios e oportunidades no campo
Expandir a certificação no campo não é simples. A diversidade de modelos de produção e a multiplicidade de produtores, especialmente pequenos e médios, tornam o controle mais complexo. A certificação exige gestão documental, adequação técnica, mapeamento detalhado e auditorias independentes, etapas que muitas vezes parecem distantes da rotina da porteira para dentro.
Além disso, há escassez de mão-de-obra especializada, auditores e certificadoras com capacidade de atender à escala necessária. Soma-se a isso a coexistência de diversos esquemas de certificação com critérios, metodologias e prazos distintos, o que aumenta a carga burocrática e a incerteza para quem deseja se adequar.
Apesar desses obstáculos, o cenário abre espaço para inovação. Há oportunidades concretas para o surgimento de serviços especializados em rastreabilidade digital, consultorias em sustentabilidade e plataformas de gestão ambiental para o setor agroenergético. A certificação, além de exigência regulatória, deve ser incorporada como instrumento de governança, eficiência operacional e diferencial competitivo.
Caminhos para Avançar na Produção de Bioenergia
Caminhos para avançar
Superar os desafios exigirá ação coordenada em quatro frentes:
1. Tecnologia e digitalização: uso de imagens de satélite, blockchain, aplicativos de campo e sensores para automatizar registros, reduzir erros e facilitar auditorias.
2. Capacitação técnica: formação contínua de auditores, técnicos e produtores para lidar com os critérios de certificação nacionais e internacionais.
3. Incentivos econômicos: ampliação de mecanismos como o RenovaBio, que remunera atributos ambientais comprovados da biomassa, por meio de um programa de certificação.
4. Harmonização regulatória: maior alinhamento entre os critérios dos diferentes esquemas (RenovaBio, RED III, CORSIA), facilitando a atuação simultânea nos principais mercados.
A Bioenergia como Nova Moeda Verde
A nova moeda verde
Se o século XX foi marcado pela corrida pelo petróleo, o século XXI inaugura uma nova disputa: a corrida pela tonelada rastreada de biomassa sustentável. O Brasil tem todas as condições de liderar esse novo capítulo, conta com clima favorável, biodiversidade, extensão territorial, experiência agrícola e trajetória consolidada em bioenergia.
Mas capturar essa liderança exigirá visão estratégica, investimentos contínuos, governança colaborativa e articulação entre produtores, agroindústria, governos e consumidores. A matéria-prima certificada será, cada vez mais, a nova moeda verde da transição energética quando falamos de bioenergia.
Quem garantir sua oferta com escala, transparência, baixo carbono e justiça social estará à frente em um mercado que não busca apenas combustíveis limpos — busca confiança, reputação e histórias inspiradoras por trás de cada gota. Você está preparado? Há muito por fazer. E o momento de agir é agora.