Artigo exclusivo para a edição 357 da revista do JornalCana
Gustavo Doubek*
O Brasil possui vocação em biocombustíveis. Seja por meio do Etanol ou do Biometano, temos combustíveis com baixa pegada total de CO2 que já são soluções de prateleira capazes de atender diversas restrições internacionais para a transição energética.
São, assim, uma grande riqueza e um diferencial internacional que cada vez mais ganha destaque como soluções verdes e escalonáveis.
Essa última palavra precisa ser destacada e sua profundidade merece uma pequena reflexão.
Somos bombardeados dia a noite por inúmeras revoluções tecnológicas que prometem grandes feitos, mas a diferença fundamental entre promessa e realidade é a escala de atuação! Ter escala é ter viabilidade em sua produção é ser capaz de apresentar uma solução que pode ser compartilhada com milhares/milhões de pessoas e assim transformar a realidade de fato, gerar renda real e, sim, ter uma chance na redução dos gases do efeito estufa.
Algo fora disso é discurso, palavras ao vento.
Desafios e Oportunidades da Transição Energética
A transição energética é um dos maiores desafios econômicos e sociais que já enfrentamos.
Pela primeira vez temos uma profunda transformação em nossa matriz energética que não ocorre por razões econômicas. Grandes mudanças anteriores, como uso do carvão ou do petróleo, ocorreram por serem combustíveis cujo processo global rendia mais do que o modelo anterior. Porém agora o jogo é diferente.
Somente custo em uma economia linear não faz a conta fechar e por isso mesmo novos modelos econômicos também estão sendo desenhados. Daí a necessidade da economia circular.
Nosso papel na Universidade é buscar viabilizar o maior número de rotas tecnológicas para gerar opções e soluções ao mercado frente a todos esses desafios.
Reduzir a nossa pegada de CO2 e os impactos ambientais é um exercício sim tecnológico, mas ele precisa ser feito de mãos dados com o setor produtivo, se não é apenas discurso vazio. Esse papel precisa ser feito também em múltiplas escalas.
Temos as descobertas, a investigação fundamental de como a natureza funciona, o aprimoramento do método, a criação de protótipos e após o início do processo de escalonamento da tecnologia.
Cada etapa com seus desafios. No Brasil, por muito tempo, infelizmente, tivemos uma hipertrofia acadêmica nas primeiras etapas, dando uma visão errônea de que a universidade vive uma realidade desconexa do resto do mundo mortal.
Mas temos vivido no Brasil, especialmente nos últimos 15 a 10 anos, uma reversão. Nunca houve tantos recursos disponíveis para aqueles que querem pegar nessa ponta final.
O Potencial da Biomassa e do Biometano
Sem dúvida as rotas tecnológicas e soluções do Brasil irão passar pela Biomassa. Nesse contexto nos parece que a melhor estratégia seja em criar soluções drop-in que possam ser usadas com a atual cadeia já estabelecida para o Etanol e que possam amplificar o alcance do Biometano.
Dificilmente conseguiremos tração se precisarmos criar uma cadeia de suprimento para um novo biocombustível. Dessa forma precisamos analisar fortalezas e fraquezas do que hoje temos em escala e em um CAPEX já parcialmente pago.
O Biometano tem a promessa de transformar resíduo em produto, despesa em lucro dentro da economia circular. Porém a escala aqui é o catch.
Produções pulverizadas são difíceis de serem utilizadas pois transportar gás é caro. Podemos gerar muita energia pelo potencial nacional em biometano, mas essa geração tradicionalmente necessita de grandes volumes concentrados. Uma tecnologia que apresenta uma solução a isso é o uso de células a combustível de óxido sólido (SOFC).
Sua construção é fundamentalmente baseada no empilhamento de diversas células e todas com a mesma eficiência de conversão. Assim, a escala deixa de ser um fator determinante como no caso de turbinas a gás. Estas células convertem, em cada célula, o combustível diretamente em energia elétrica sem as limitações termodinâmicas dos ciclos térmicos (Carnot, Rankine etc).
Essa conversão pode ser feita diretamente alimentando a célula com o Biometano ou integrando sua operação com um reator de reforma. A reforma do biometano (ou metano) é um processo industrial consolidado, e a sinergia com as SOFCs aqui é que ambos os processos ocorrem em temperaturas próximas ~800ºC e o calor gerado na SOFC pode ser usado pelo reformador para manter a carga térmica da reação. Além disso o gás reformado pode ser usado nas SOFC sem nenhum processo de purificação do gás.
O resultado disso são eficiências de conversão que partem de 50%, podendo chegar a 75% na geração elétrica. Esta tecnologia não é nova. Células a combustível foram criadas antes da descoberta do petróleo e as SOFCs concebidas ~1940. Mas como uma tecnologia tão antiga ainda não está amplamente disponível?
A resposta é simples, custo e necessidade. Sua construção é baseada no fino controle de materiais cerâmicos, e apesar de não necessitar de muitos elementos exóticos, é uma manufatura especializada cujo custo extra frente a motogeradores não fazia sentido no passado, onde o valor do kWh era muito baixo e emissões não eram um alvo.
A Unicamp e o Futuro das Células SOFCs
Hoje a realidade é outra e uma chance ao Brasil se antecipar em uma tecnologia sem players dominantes, como o caso da China na produção de baterias de Li-ion. Uma chance de atuar em tecnologias de ponta, mas para isso, muito investimento é necessário.
Aqui na UNICAMP, graças ao investimento público e privado, estamos construindo a primeira manufatura piloto de células SOFCs de diversos segmentos. Enxergamos esse desafio como nossa missão e responsabilidade para com a sociedade. Essa estrutura estará disponível para o setor produtivo criar seus protótipos e servir de 1º passo na busca por escala de produção.
*Professor associado na UNICAMP