Enquanto a nova geração de biocombustíveis não surge, as grandes multinacionais do petróleo e do agronegócio resolveram correr para o etanol. Em pouco tempo, as maiores empresas brasileiras do setor se desnacionalizaram ou se associaram ao capital estrangeiro.

A Cosan, a líder mundial na produção de açúcar e álcool, é um caso único: fez com a Shell um acordo bastante promissor para ambas, que não implica perda de controle acionário.

A Santelisa Vale, a segunda no ranking, passou para o controle da trading francesa Louis Dreyfus, enquanto a americana Bunge arrematou a maior parte das usinas do grupo Moema e pulou para o terceiro lugar.

O grupo Santa Terezinha, de capital nacional, é hoje o quarto maior produtor, com a francesa Tereos em seu encalço. Mais gigantes chegaram ao Brasil de olho no etanol. A divisão de biocombustíveis da BP, ex-British Petroleum, fez uma joint venture com a Tropical Bioenergia.

A aposta das multinacionais, especialmente as de petróleo, parece ter como premissa que as chances de se obter uma tecnologia comercialmente viável a curto prazo para a produção de biocombustível utilizando resíduos, não concorrentes com a produção de alimentos (segunda geração), diminuíram.

A partir daí, não havia como tirar o etanol brasileiro do mapa dos negócios, pela escala de sua produção, pelos seus custos competitivos e pelo grau de redução da emissão de carbono que permite – três vezes maior que o etanol de milho produzido nos EUA. Dos combustíveis alternativos no mercado, o etanol de cana-de-açúcar é o mais viável.

O etanol europeu – a União Europeia produz e consome cerca de 70% do total mundial de biocombustíveis – só se sustenta sem subsídio com o preço do petróleo acima de US$ 115 o barril. O etanol americano, a partir do milho, é fartamente subsidiado e compete com outras culturas alimentares, uma ameaça apenas possível, e não fatal, no caso da cana-de-açúcar. Caso o Brasil chegasse à frente na produção em escala comercial do etanol celulósico (segunda geração) poderia praticamente dobrar seu fornecimento com a mesma área plantada.

Cálculos comerciais de curto prazo motivam a revoada para o etanol: há uma demanda à procura de oferta. O Ato de Segurança e Independência Energética do governo de Barack Obama rege que 45 bilhões de litros de etanol substituirão parte da energia convencional em 2010 e 136 bilhões de litros em 2022.

O espaço reservado para a categoria de produtos na qual o etanol brasileiro se encaixa é de 15 bilhões de litros naquele ano. Hoje o Brasil exporta para o mercado americano 1,5 bilhão de litros dos 18,7 bilhões que produz. Na União Europeia, pelo menos 20% do consumo terá de ser preenchido por biocombustíveis em 2020.

A atratividade do etanol do Brasil cresceu aos olhos das multinacionais também por motivos de ocasião. As empresas de açúcar e álcool brasileiras partiram para rápida expansão calcada em endividamento, um modelo que foi posto brutalmente em xeque pela crise financeira global.

A capacidade de produção avançou mais que a demanda e o açúcar, que já garantiu providenciais receitas compensatórias em situações difíceis, teve preços muito ruins até chegar às boas cotações de agora. Companhias asfixiadas financeiramente em setores estratégicos como o de energia costumam ser um bom alvo de compra e se a moeda do país se valoriza, como o real, barateando o preços dos ativos em dólar, tornam-se ainda mais cobiçáveis.

Não deixa de ser curioso que um governo empenhado em criar multinacionais “verde-amarelas” tenha assistido à desnacionalização da produção do álcool, que em nenhum outro país do mundo é usado em tão larga escala quanto no Brasil – rivaliza com a gasolina em pé de igualdade – e que é uma das principais bandeiras “verdes” do governo nos fóruns internacionais.

A ausência da escolha de um “vencedor” a ser sagrado com benesses oficiais não impediu, como costuma ocorrer, o avanço das empresas com as melhores estratégias de negócio. A Cosan venceu todas as etapas do jogo até agora com lances ousados. A parceria com a Shell pode levá-la longe, em um casamento quase perfeito. Ao se tornar o maior produtor mundial, o grupo correu para a distribuição, abocanhando centenas de postos da Esso e da Petrosul.

Isso era altamente adequado a seus objetivos e revelou-se depois algo precioso para convencer um parceiro do porte da anglo-holandesa Shell. Com sua rede de distribuição, a Cosan devolve à Shell um poder de influência no varejo de combustíveis que ela havia perdido.

Cosan e Shell encostaram no grupo Ultra na disputa pela vice-liderança do mercado, com a BR à frente. A ironia é que enquanto a distribuição de combustíveis se nacionalizava, com BR e grupo Ultra à frente, a produção do álcool seguia o rumo contrário.

A Shell já é a maior distribuidora mundial de biocombustíveis, mas não se envolvera, direta ou indiretamente, na produção. A posição dominante da Cosan permite à multinacional mergulhar sem riscos relevantes em um novo negócio que exige enorme expertise. Do lado da Cosan, o interesse era óbvio e variado.

Uma multinacional como a Shell pode abrir as portas do mercado externo e, por puros motivos comerciais, somar esforços para reduzir barreiras protecionistas como as dos EUA, que estarão sujeitas a revisão este ano. A BP, em menor escala, contribui significativamente para a “causa” do etanol, assim como a Bunge e a Dreyfus.

A aliança com a Shell, porém, acenou com algo igualmente valioso para a Cosan: tecnologia de ponta. A Shell trouxe para dentro da joint venture a Iogen, uma das principais empresas na pesquisa de biocombustíveis de segunda geração. A seu lado estará a Codexis, especializada em tecnologias limpas.

A Shell, por sua vez, tem a possibilidade de assegurar suprimento no futuro – o Brasil, na verdade, tem pouco etanol para exportar e hoje vende 3,5 bilhões de litros – sem precisar se aventurar por terrenos desconhecidos, com um líder mundial na produção a seu lado. A Cosan obteve outra vantagem nada desprezível.

Com o aporte de US$ 1,65 bilhão da Shell, poderá reduzir o peso de suas dívidas, uma carga que se revelou letal para muitos de seus concorrentes, e preparar novos lances em um mercado que promete muitas surpresas. (José Roberto Campos)