A quitosana é um polímero bioadesivo, biodegradável e potencialmente antimicrobiano, com diversas aplicações: na agricultura, é usado no controle de pragas e conservação de produtos agrícolas; na indústria, para a produção de revestimentos e embalagens biodegradáveis; no segmento farmacêutico, para a fabricação de curativos e o encapsulamento de fármacos.
Uma pesquisa realizada na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Araras, mostrou que a quitosana também pode ser empregada como antimicrobiano natural na produção de bioetanol, substituindo o ácido sulfúrico, atualmente usado para controlar contaminações bacterianas no processo industrial.
E o mais interessante é que o processo desenvolvido utiliza o melaço de cana como matéria-prima para a bioextração da quitina, precursora da quitosana, a partir de resíduos de camarão. Isso oferece a possibilidade de que a quitosana seja produzida na própria usina, segundo o conceito de economia circular.
Os resultados foram publicados no Journal of Polymers and the Environment.
Quitosana: saiba destaques sobre ela
Sandra Regina Ceccato Antonini, professora do Departamento de Tecnologia Agroindustrial e Socioeconomia Rural da UFSCar e coordenadora do estudo, conta destaques para a Agência FAPESP:
- “A quitosana é derivada da quitina, um polissacarídeo encontrado na parede celular de fungos, em carapaças de crustáceos [como camarões e caranguejos] e em insetos.
- Para obter a quitosana, a quitina precisa passar por um processo chamado desacetilação, no qual os grupos acetila [-COCH3] são removidos da molécula.
- No método convencional, utilizado na produção industrial de quitosana, a extração da quitina é feita com o emprego de ácidos ou bases fortes.
- Uma grande novidade trazida por nosso estudo é que, em vez desse caminho químico, desenvolvemos um processo inteiramente biológico, extraindo a quitina da casca de camarão por meio da fermentação do melaço de cana pela bactéria Lactiplantibacillus plantarum, com a adição de uma fonte de nitrogênio.”
Como é a metodologia
A pesquisadora detalha o passo a passo do processo. Na primeira etapa, que é a obtenção da quitina, o resíduo de camarão é posto no fermentador junto com o melaço de cana, a bactéria lática e a fonte de nitrogênio.
O microrganismo fermenta o melaço, produzindo ácido lático e proteases.
Essas substâncias liberam a quitina do resíduo.
Depois de três dias, a quitina é obtida por filtração e secagem.
Na segunda etapa, a quitina passa pelo processo de desacetilação, dando origem à quitosana. Embora também existam opções biológicas para essa segunda etapa, elas não foram exploradas no estudo em pauta.
A desacetilação continuou sendo realizada por meios químicos.
“O que nós fizemos, sim, foi manejar essa segunda etapa química de modo a produzir tanto uma quitosana de alto peso molecular quanto uma quitosana de baixo peso molecular. Por que isso? Porque cada uma se presta a uma finalidade diferente. As quitosanas de baixo peso molecular geralmente têm uma atividade antimicrobiana maior, enquanto as de alto peso molecular, isto é, com cadeias maiores, se prestam melhor à confecção de filmes poliméricos”, conta Antonini.
O estudo gerou protocolos para a produção de filmes de boa qualidade; para a produção de microesferas, que podem ser utilizadas como carregadores de fármacos; e, principalmente, para a produção de um antimicrobiano natural que pode substituir o ácido sulfúrico na indústria do etanol. Vale lembrar que o ácido sulfúrico é altamente corrosivo.
A quitosana constitui uma opção ambientalmente mais amigável.
“Além disso, há questões de mercado. Na época da pandemia, o ácido sulfúrico ficou em falta e isso deu, por assim dizer, um desespero no pessoal do setor sucroalcooleiro, que me procurava, pedindo uma alternativa porque já não sabia o que fazer. Bem, a quitosana é essa alternativa. E o seu uso na indústria do etanol é a grande novidade que o nosso estudo aporta, pois apresentou atividade antimicrobiana comparável à do ácido sulfúrico”, sublinha a pesquisadora.
O cotejo entre o desempenho dos dois agentes é objeto de outro artigo, já submetido para publicação.
Ressalte-se ainda que a quitosana utilizada em solução como antimicrobiano e para a produção de filmes e microesferas não foi purificada, o que leva a uma redução de custos na obtenção do polímero.
Além do potencial na indústria do bioetanol, a quitosana desenvolvida pela equipe da UFSCar-Araras demonstrou atividade antifúngica contra patógenos agrícolas, como Alternaria alternata (causador da mancha de alternaria), Fusarium sp. (fusariose ou podridão-seca) e Geotrichum citri-aurantii (podridão-azeda).
Essa propriedade sugere seu uso como biopesticida natural na agricultura, reduzindo a necessidade de fungicidas sintéticos.
Embora a viabilidade econômica da substituição do ácido sulfúrico ainda precise ser analisada, a pesquisa abre caminho para uma abordagem mais sustentável na produção de etanol.
“Se pensarmos em um modelo de biorrefinaria, existe a perspectiva de produzir quitosana dentro da própria usina sucroalcooleira, aproveitando o melaço e resíduos de levedura, em um processo de economia circular”, sugere Antonini.
A pesquisa é fruto da tese de doutorado de Isabella Carvalho Tanganini, defendida na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) em junho de 2024.
Primeira autora do artigo, Tanganini foi orientada por Antonini. E parte de sua tese foi desenvolvida em parceria com a professora Andréia Fonseca de Faria, pesquisadora da University of Florida, nos Estados Unidos, coautora do artigo.
O trabalho recebeu apoio da FAPESP por meio de dois projetos (18/19139-2 e 22/03293-8).
O artigo Chitin and Chitosan Production from Shrimp Wastes by a Two-Step Process Consisting of Molasses-Based Lactic Fermentation and Chemical Deacetylation: Insights into the Antimicrobial, Microsphere and Film-Forming Properties of Chitosan pode ser acessado em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10924-024-03365-8.