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Estocar carbono abre nova oportunidade de negócios para usinas

CO2 negativo, gerado na produção de etanol, pode ajudar a virar crédito e ser vendido para quem precisa reduzir emissões

Estocar carbono abre nova oportunidade de negócios para usinas

As plantas de bioenergia, como também são chamadas as usinas e destilarias, têm pela frente uma nova oportunidade de negócios.  Trata-se da tecnologia BECCS (Captura e Armazenamento de Carbono de Bioenergia, na tradução literal).  Em resumo, é a operação de capturar carbono (CO2) da atmosfera e armazená-lo em reservas geológicas. 

No caso do setor sucroenergético, o carbono emitido vem da fermentação de matéria-prima renovável e, assim, não gera emissões adicionais.  Ou seja, pode-se alcançar intensidades negativas de carbono. E, ao ser capturado, esse ativo pode gerar créditos de carbono associados. 

É aí que está o negócio: empresas que precisam reduzir suas emissões de CO2 podem adquirir esses créditos para quitar a dívida ambiental. 

“A BECCS desempenha um papel importante na descarbonização de setores como a indústria pesada, a aviação e o transporte rodoviário no Cenário de Zero Emissões Líquidas até 2050”, destaca a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), lembrando da data comprometida para a descarbonização desses setores.

Não é só: a tecnologia de estocagem de CO2 credencia a usina como produtora de etanol com pegada de carbono negativa. A consequência é que esse biocombustível passa a ter maior qualificação. 

Potencial 

A BECCs será estratégica para cumprir as metas globais de descarbonização.  Segundo a Agência Internacional de Energia, hoje apenas 2 milhões de toneladas de CO2 são capturadas por ano, em sua maioria em aplicações de etanol. 

Projetos de estocagem de CO2 em etanol, seja em fase inicial e avançada de implantação, estimam, conforme a Agência, que a captura de carbono pode chegar a 60 milhões de toneladas anuais até 2030. 

No entanto, para cumprir as emissões globais líquidas nulas até 2050 será preciso capturar o triplo do volume estimado até 2030.  Por isso, “será necessário apoio específico à remoção de dióxido de carbono e, em particular, à BECCS, para traduzir a recente dinâmica em capacidade operacional”, resume a IEA. 

Como implantar BECCS

A tecnologia BECCS possui rotas diferentes.  Nos EUA, onde o governo anunciou incentivos de US$ 100 milhões no começo deste ano, há projetos em fase inicial e instalações em funcionamento. 

Conforme a IEA, as duas primeiras instalações de armazenamento atualmente em funcionamento – ambas fábricas de bioetanol nos Estados Unidos – demoraram cerca de sete anos para serem concluídas (incluindo a construção das infra-estruturas de transporte e armazenamento). 

Hoje a velocidade é outra. Na comparação com outras fontes de captura de CO2 por BECCS, as usinas podem implementar a estrutura entre um e dois anos.  Isso porque, segundo a Agência, as fábricas de etanol “apenas requerem a instalação de unidades de secagem e compressão de CO2, que são menos intensivas em capital do que as unidades de captura total.”

Tecnologia no Brasil 

As tecnologias de BECCS disponíveis globalmente também estão aptas para implantação no Brasil.  No mais, o Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), da Universidade de São Paulo (USP), possui dois programas focados em captura de carbono. 

O primeiro deles, “Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono (BECCS), “visa contribuir para a construção de uma percepção pública positiva da BECCS e influenciar o desenho de políticas públicas de sustentabilidade para o sistema energético brasileiro. 

Já o segundo programa, “Captura e Utilização de Carbono (CUC)”, tem por objetivo criar valor a partir das emissões de CO2 “por meio do desenho de processos integrados para captura e conversão de CO2.” Nesse conceito, conforme a coordenação do programa, “o CO2 é considerado um elemento químico valioso para combustíveis e materiais”.

Falta regulamentação 

Nem tudo, porém, é questão de tecnologia e de empreendimento. A tecnologia BECCS, assim como demais estratégias ligadas a carbono, está à espera de regulamentação no país. 

O Congresso avalia dois projetos ligados ao tema. 

Enquanto isso, funciona o mercado desregulado, o voluntário, que une em uma ponta o ‘vendedor’ e, na outra, o ‘comprador.’ Mas as apostas são de que a tecnologia BECCS só ganhará tração com a regulamentação que, no mais, cria segurança jurídica. 

Aliás, a política de regulação do mercado de carbono deve ter segurança necessária para evitar a judicialização e as incertezas. 

Enfim, a regulamentação desse mercado objetiva reduzir as emissões de gases de efeito estufa ao criar incentivos econômicos para que os agentes optem por atividades menos poluentes e invistam em tecnologias limpas.

Como funciona

Em linhas gerais, o mercado de carbono é um sistema de troca de títulos de emissão já utilizado em diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento que visa a redução das emissões totais de gases de efeito estufa.

Os agentes econômicos negociam entre si cotas de emissão distribuídas pelo governo federal, cujo total é compatível com as metas de descarbonização do país. 

ENTREVISTA

“Ótima opção para baixar as emissões de carbono”

Marcos Buckeridge

Para saber mais sobre a tecnologia BECCS no setor sucroenergético, JornalCana entrevista Marcos Buckeridge, diretor do programa BECCS do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI) da USP.

Confira: 

JornalCana: Como a tecnologia BECCS também pode ser implementada nas unidades do setor sucroenergético?

Marcos Buckeridge – BECCS significa produzir bioenergia com captura e armazenamento de carbono.

Portanto, para que o setor use esta tecnologia, será necessário que comece a trabalhar em todo o processo de produção de etanol no sentido de diminuir as emissões no processo até parear com o que é capturado pela fotossíntese das culturas agrícolas bioenergéticas. 

Não será fácil, mas compensa para o Brasil, pois teríamos um etanol com uma marca de sustentabilidade muito forte.

JornalCana: Como fazer isso? 

Marcos Buckeridge – Alguns dos pontos principais a serem atacados pelo setor seriam:

1) abolir o uso de diesel em todas as partes do processo. No transporte por caminhões, por exemplo, uma opção será usar a nova tecnologia de produção de hidrogênio a partir do etanol. Uma planta está em construção na USP em parceria com a Shell, prevista para outubro de 2024. 

Testaremos primeiro em ônibus. Se funcionar bem, pode ser uma boa opção para o setor sucroenergético;

2) capturar e armazenar como o CO2 produzido na dorna de fermentação (e outras emissões, se possível). Os geólogos brasileiros já conhecem bem o subterrâneo de várias partes do Estado de São Paulo, sendo possível enterrar o CO2 a grandes profundidades.

Isso pode ser feito com o CO2 em estado supercrítico ou enterramento em locais em que ele reage com a rocha e se transforma em outro composto, ficando armazenado por longos períodos;

3) Uma outra opção é usar o CO2 para fazer produtos químicos. Este processo (chamado de BECCUS, já que inclui o USO do carbono também), é uma opção interessante que prolonga a vida do carbono antes de voltar ao estado de CO2.

Esse sistema também gera negócios, o que pode ser atrativo para tornar as aplicações de BECCUS economicamente viáveis.

4) Outro caminho para aumentar a sustentabilidade do sistema é produzir hidrogênio a partir da água da vinhaça. Este hidrogênio pode ser usado para alimentar as caldeiras com energia e com isso produzir bioeletricidade ainda mais sustentável;

5) Temos que lembrar que há emissões no campo também, que devem ser consideradas na conta da sustentabilidade e emissões. Nesse contexto, cuidar da saúde do solo será fundamental. Um outro aspecto ligado à produção agrícola de cana e milho é o consorciamento de florestas nativas que envolvam os campos agrícolas.

Publicamos esta ideia em 2012, a qual chamamos de “caminho do meio”. Nossos cálculos mostraram que comparando a mesma área plantada, a floresta captura 18 vezes mais CO2 do que um canavial.  Portanto, o “caminho do meio” é uma outra forma de olhar BECCS, como uma forma de diminuir emissões pelo sistema sucroenergético.

JornalCana: Pode-se dizer que BECCS pode ser uma nova fronteira para o setor sucroenergético contribuir com a redução de emissões de GEEs?

Marcos Buckeridge – BECCS me parece uma ótima opção para baixar as emissões de carbono pelo sistema sucroenergético. É, em vários aspectos, uma nova fronteira no que concerne à diminuição dos impactos das mudanças climáticas pela produção de energia.  Mas há fronteiras complexas que precisam ser atacadas junto com BECCS. 

JornalCana: Que fronteiras? 

Marcos Buckeridge – Uma delas é a adaptação das plantas de cana, milho e outras culturas bioenergéticas ao aumento de CO2 na atmosfera, à seca e ao aumento de temperatura. 

Já aprendemos algumas coisas e sabemos que, no início, o aumento de temperatura pode ser até benéfico e aumentar a produção.  Porém, acima de uma certa temperatura a combinação do aumento de CO2 e alta temperatura com episódios de seca poderá ser deletéria para as culturas.

Já sabemos que para a soja o conjunto de fatores será deletério. Por isso, esta é uma fronteira que não deve ser esquecida.

JornalCana: Mesmo sem a regulamentação do mercado de carbono, em fase de tramitação no Congresso, o sr. considera viável investir na tecnologia? 

Marcos Buckeridge – Acredito que cálculos de retorno econômico precisam ser feitos para podermos chegar uma resposta adequada e precisa a esta pergunta. 

Se conseguirmos números confiáveis, eles poderão ser usados para convencer o congresso de que é importante regularizar o mercado de carbono.

Há um valor intrínseco da diminuição das emissões que passa pelos benefícios coletivos (para as populações e para o mundo) e que reflete a imagem do sistema sucroenergético brasileiro para a sociedade. 

A atitude de apoiar e investir faz com que o negócio ganhe força e passe a existir.  Faz com que tenhamos a oportunidade de aprender e testar estratégias de diminuição de emissões.  A minha visão é que a imagem do sistema sucroenergético é parte importante da imagem do Brasil no mundo. Todos os setores devem se unir nesse momento para tornar este importante setor mais sustentável ainda. 

A ciência é absolutamente crucial. Mas ela sozinha não tem força para que BECCS tenha sucesso.  É preciso haver união do governo (Executivo e Congresso), das empresas e apoio de toda a sociedade para que o Brasil siga este caminho, pelo qual já somos famosos no mundo.

FS avança na injeção de CO2 

A produtora de etanol de milho FS caminha para ser a primeira produtora de etanol com pegada negativa de carbono e a primeira a desenvolver a tecnologia BECCS na produção de etanol, fora dos Estados Unidos.

Com três unidades, em Lucas do Rio Verde, Sorriso e Primavera do Leste, todas no estado de Mato Grosso, a empresa tem capacidade para produzir cerca de 2,3 bilhões de litros de etanol por ano e concluiu, em maio último, estudos técnicos que comprovam condições geológicas adequadas para injetar no subsolo o dióxido de carbono (CO2) emitido na fase de fermentação da produção do biocombustível.

Segundo a empresa, a adoção da tecnologia na unidade de Lucas do Rio Verde vai evitar o lançamento na atmosfera de aproximadamente 423 mil toneladas de CO2 por ano pela operação da indústria. 

Posteriormente, a solução poderá ser implantada em quase todas as unidades da companhia, atingindo um potencial de remoção de CO2 da atmosfera de mais de 1,8 milhão de toneladas de carbono por ano.

Zero emissão

No caso da produção do etanol de milho, essa produção de COvem da fermentação do milho, o que torna esse COlimpo, ou seja, com zero emissão. 

Ao retirá-lo da atmosfera e injetá-lo no subsolo, o torna negativo em emissão. 

A FS iniciou os estudos geológicos para estocagem de carbono em 2021, inspirado por projetos similares que operam nos Estados Unidos. 

Em outubro de 2023, foi perfurado um poço estratigráfico com aproximadamente 2 mil metros de profundidade para examinar as formações rochosas da área abaixo da indústria de etanol, em Lucas do Rio Verde. 

A conclusão dos estudos é que a formação rochosa Diamantino, localizada na Bacia dos Parecis, em Mato Grosso, tem condições adequadas de porosidade e permeabilidade para receber o CO2 a ser injetado a uma profundidade superior a 800 metros e mantê-lo estocado com segurança, abaixo de uma camada de rochas selantes, com espessura de 128 metros (o equivalente a um prédio de 40 andares), capaz de evitar que o CO2 retorne à superfície.

“Agora precisamos do avanço da regulamentação e dos mercados de comercialização do carbono”, afirma o CEO da FS, Rafael Abud. em relato para a imprensa.

“Além da utilização em automóveis, o etanol produzido com a tecnologia pode ser usado para produzir combustível sustentável de aviação (SAF) e navegação, tornando o etanol brasileiro, cada vez mais, um dos maiores contribuidores para a transição energética do mundo”, completa.

Aporte adicional

Assim que o legislativo aprovar a regulamentação da atividade – incluída no projeto de lei do programa Combustível do Futuro –, a FS vai investir adicionais R$ 350 milhões na implantação dos equipamentos para capturar, desidratar, comprimir e injetar CO2 no subsolo. 

As obras podem começar ainda este ano, com término previsto no final de 2025. Serão gerados cerca de 230 empregos diretos durante a perfuração dos poços, construção e montagem dos equipamentos de compressão e desidratação do CO2

Recentemente, o projeto contou com o apoio da FINEP, agência pública de fomento à inovação, que atua com foco em ações estratégicas, estruturantes e de impacto para o desenvolvimento sustentável do Brasil.

De acordo com Rafael Abud, a adoção em larga escala do modelo BECCS pelo setor de etanol, poderá reduzir as emissões de carbono na atmosfera em cerca de 77 milhões de toneladas de por ano, equivalentes a quase 39% das emissões do setor de transporte rodoviário, de acordo com as estimativas mais recentes.

Delcy Mac Cruz

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