A História nos ensina que as negociações comerciais multilaterais podem “ressuscitar”, mesmo depois de severos colapsos. As Rodadas Kennedy (1964-1967), Tóquio (1973-1979) e Uruguai (1986-1994) enfrentaram fiascos antes de serem concluídas, após longos anos de negociação. Doha, entretanto, mesmo que não esteja definitivamente encerrada, dificilmente será finalizada com sucesso em um horizonte próximo, o que leva a importantes mudanças no panorama do comércio internacional.
O fracasso de Doha traria mais instabilidade para a economia mundial em uma época de incertezas causadas pela possibilidade de recessão nos Estados Unidos e pela alta mundial no preço dos alimentos. Após a conclusão das Rodadas anteriores, constatou-se um declínio no número de disputas comerciais entre os países. Isso porque, nessas negociações, estes estabelecem novas regras e parâmetros a serem observados. Os litígios só voltavam a aumentar após um certo tempo, Ã medida que a implementação das novas regras se mostrava incompatível com os termos acordados. Por outro lado, tentativas frustradas de fechar uma rodada de negociações tendem a causar uma elevação imediata no número de disputas na Organização Mundial do Comércio (OMC). Isso porque os países transferem para o foro “judicial” o que buscavam solucionar no foro “negocial”, tendência que já foi notada durante a Rodada Uruguai.
Esse deve ser um dos rumos que nossa política externa tomará a seguir. Um dos principais objetivos do Brasil em Doha era a redução dos subsídios agrícolas concedidos por países desenvolvidos, em especial pelos Estados Unidos e pela União Européia. Outra meta importante era regulamentar o setor de etanol, que os Estados Unidos, maior produtor mundial, alegam tratar-se de produto fora da disciplina da OMC (o etanol não é um bem industrial e, portanto, não entraria na negociação de NAMA – Non-agricultural Market Access -, e também não é um bem agrícola, uma vez que não está entre os produtos listados no Anexo I ao Acordo sobre Agricultura). A alternativa, agora, é fazer com que essa agenda avance por meio de disputas na OMC.
No caso dos subsídios agrícolas, o Brasil sinaliza que levará adiante a disputa que iniciou em 11 de julho de 2007 contra os EUA, seguindo o movimento inicial do Canadá. O Brasil solicitou consultas formais na OMC sobre distintas medidas americanas (para milho, arroz, açúcar e outras commodities) que considera enquadrarem-se no conceito de subsídios à agricultura, entre elas o apoio doméstico nos anos de 1999-2001, 2002 e 2004-2005, em desacordo com o artigo 3.2 do Acordo sobre Agricultura, e as garantias de créditos à exportação. O Brasil questiona programas como o GSM102 e o Supplier Credit Guarantee e argumenta que estes violam o Acordo sobre Agricultura e o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias. Na esperança de que as negociações multilaterais de Doha obrigassem os EUA a reduzir seus subsídios, o governo brasileiro não havia dado andamento a esse processo desde o estabelecimento do painel, em 17 de dezembro de 2007. Agora, surge o momento oportuno.
Na esperança de que Doha obrigaria os EUA a reduzir subsídios, o Brasil não deu andamento a solução de controvérsias na OMC
Da mesma forma, o Brasil demonstra querer ingressar com pedido de consultas perante a OMC para questionar os subsídios americanos à produção de etanol, que pela nova edição da Farm Bill perfazem aproximadamente US$ 0,46 por galão, bem como a barreira ao ingresso do produto brasileiro naquele país, hoje em US$ 0,54 por galão. Os estudos para início do contencioso estão prontos e acredita-se em um resultado satisfatório para essa disputa.
Outros membros da OMC também têm se municiado para levar ao Órgão de Solução de Controvérsias os assuntos não resolvidos pela Rodada. O caso do regime europeu de importação de bananas, questionado por países como Equador e Guatemala, é um exemplo. Pode-se dizer, no entanto, que embora represente uma alternativa para combater a concessão de subsídios e eliminar barreiras ao comércio, a abrangência e eficácia de uma recomendação desse órgão é restrita. Um contencioso na OMC gera efeitos vinculantes apenas para as partes em disputa e, sobretudo, apresenta dificuldades de implementação diante da falta de efetividade das sanções (compensação e retaliação) previstas nas regras da organização. Um país pode acionar o mecanismo de solução de controvérsias, obter recomendação favorável e, ao final, o país contra o qual a disputa foi conduzida pode optar por não alterar a medida condenada. Caso quem tenha iniciado a disputa seja um país em desenvolvimento, com pauta exportadora restrita e dependência econômica do país contra o qual a disputa foi instalada, ele pode ver-se inibido a retaliar e, mesmo que decida fazê-lo, é possível que o impacto dessa retaliação se mostre insignificante para a economia do país retaliado. Exemplo disso é o caso que o Brasil levou à OMC sobre o algodão em que, apesar de condenados, os Estados Unidos não deixaram de conceder subsídios ao setor. O governo brasileiro pensa em retaliar os EUA em propriedade intelectual (pagamento de royalties), o que, embora não apresente benefícios diretos ao setor algodoeiro brasileiro – que levou a disputa adiante e arcou com as despesas -, seria a única forma de atingir os americanos.