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O que está por trás do fracasso da Rodada Doha

Quando o Brasil e a Índia abandonaram, em junho passado, as conversações de comércio global com os Estados Unidos e a União Européia (UE), em Potsdam (Alemanha), pondo fim às perspectivas de uma conclusão rápida para a Rodada Doha, eles produziram a familiar aflição em torno do aumento do protecionismo e do futuro incerto do sistema de comércio multilateral que acompanha essas contrariedades. Na troca de acusações que se seguiu, altos funcionários norte-americanos chegaram mesmo a acusar o Brasil e a Índia de terem colocado seus estreitos interesses próprios acima dos de outros países em desenvolvimento.

Os alertas desesperados de especialistas e políticos de formação de uma espiral protecionista no molde daquela dos tenebrosos dias dos anos 30 são exagerados, no entanto.

Claro, o colapso das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) ocorre quando os sentimentos anti-livre comércio estão em ascensão nos países desenvolvidos.

E o fim da autoridade para negociar acordos comerciais, conhecida como fast track, ou via rápida, que limita o Congresso dos Estados Unidos a votar sim ou não para qualquer acordo comercial, tolhe a capacidade de Washington de tocar negociações comerciais multilaterais ou bilaterais.

No entanto, os benefícios econômicos da Rodada Doha – que foi lançada em 2001 na capital do Catar para mostrar solidariedade e um compromisso com a globalização na esteira dos ataques terroristas de 11 de setembro – foram exagerados.

O Banco Mundial (Bird) revisou para baixo suas estimativas de avanços da Rodada Doha para relativamente míseros US$ 96 bilhões até 2015, ou só 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB) global. E a maior parte desses benefícios irão para países de alta renda.

Mesmo a liberalização plena do comércio global de produtos resultará em um aumento da renda global de só US$ 287 bilhões até 2015, equivalente a 0,7% do PIB global.

Longe de dar as costas para o livre comércio, o Brasil e a Índia deram por encerrarado as conversações depois de concluírem que as concessões agrícolas oferecidas pelos EUA e pela UE eram nada comparado com o que eles exigiam de países em desenvolvimento em termos de acesso ao mercado industrial.

O Brasil e a Índia, com o apoio de outros países em desenvolvimento, queriam que os EUA reduzissem o teto de subsídios agrícolas que distorcem o mercado para entre US$ 10 bilhões e US$ 11 bilhões, e que a UE cortasse os subsídios aos agricultores em 80%.

Os Estados Unidos, contudo, só propuseram reduzir o limite para os subsídios agrícolas para US$ 17 bilhões por ano, mesmo que o presente nível de subsídios agrícolas norte-americanos seja aproximadamente de US$ 11 bilhões ao ano.

Por sua vez, a União Européia indicou que só estará disposta a cortar suas tarifas em 60%. Na troca dessas concessões limitadas, os EUA e a UE pediram para a Índia e o Brasil reduzirem as tarifas industriais em mais de 60%, muito mais do que os aproximadamente 25% pelo qual os EUA e a UE estavam dispostos a cortar suas próprias tarifas industriais.

Não surpreende, então, que as conversações tenham chegado a um súbito fim.

Os EUA e a UE atribuíram o fracasso das negociações à recusa do Brasil e da Índia de aceitarem os cortes tarifários, enquanto o Brasil e a Índia responderam que eles eram solicitados a dar demais em troca de muito pouco.

Em 17 de julho, os diretores das comissões de negociação da OMC emitiram propostas conciliatórias que todas as partes teriam de examinar antes das conversações serem retomadas em setembro.

Enquanto as negociações da Rodada Doha definham e a vontade política necessária para alcançar um acordo desvanece, a globalização não é vista como benéfica para grupos importantes – os trabalhadores de países ricos e os agricultores de países pobres – e o espírito que motivou Doha na sua origem, há seis anos, em boa parte evaporou. Contudo, vale lembrar que a predecessora, a Rodada Uruguai, levou oito anos para ser concluída.

O maior risco, sem dúvida, é o retrocesso dos avanços alcançados até agora. No entanto, não há indícios de governos que procuram sair do sistema de comércio multilateral.

As atitudes políticas nos EUA, especialmente nessa longa temporada de eleição presidencial, estão virando contra o livre comércio. Os congressistas democratas estão bloqueando um acordo de livre comércio bilateral com a Coréia do Sul com base em que o acordo pouco faz para abrir o mercado automotivo desse país.

A aprovação de outros acordos de livre comércio bilateral, com o Marrocos, o Panamá e o Peru, também foram suspensos pelo Congresso.

Mais preocupante, no entanto, é a recente tendência de países recorrendo ao sistema de solução de controvérsias da OMC para pressionar suas metas de liberalização do comércio global.

Em julho, poucas semanas depois de as conversações de Potsdam terem fracassado, o Brasil entrou com uma ação na OMC contra os Estados Unidos alegando que os subsídios agrícolas norte-americanos excederam o limite de US$ 19,1 bilhões acertado com a organização. O Canadá entrou com uma ação similar contra os subsídios agrícolas norte-americanos em janeiro de 2007.

Uma série de regras adversas na OMC pode incitar o Congresso americano a reconsiderar seu apoio para a organização e o acesso multilateral como um todo. Significativamente, o Brasil já ganhou duas ações referenciais na OMC – uma contra os subsídios para o algodão nos Estados Unido se outra contra os subsídios para a produção de açúcar na União Européia.

A tendência de países entrarem com ações na OMC para forçar a abertura de comércio pode ser uma que os EUA, com sua persistente indisposição de mexer nas suas indefensáveis políticas agrícolas, não pode deter.