Mercado

Com poucas ações e muito poder

EXAME A abertura de capital da Cosan, maior produtora mundial de açúcar e álcool, em novembro de 2005, foi uma das mais festejadas e bem-sucedidas do Brasil. A valorização de mercado da companhia, que desde o início foi listada no Novo Mercado, o grau máximo de governança corporativa do mercado de capitais brasileiro, chegou a 250% nos primeiros cinco meses pós-IPO. No final de junho, porém, os executivos da Cosan surpreenderam com o anúncio de uma reestruturação societária que poderá resultar no fechamento do capital da companhia no Brasil. A intricada operação (veja quadro) prevê que os acionistas da Cosan troquem sua participação por ações da recém-criada holding Cosan Limited, com sede nas Bermudas. A previsão é que esses papéis comecem a ser negociados na bolsa de Nova York a partir da segunda semana de agosto. A principal diferença dessa nova estrutura acionária é que — diferentemente do que acontece no Novo Mercado — as ações do controlador Rubens Ometto terão direito a dez votos cada uma. Os demais acionistas, apenas uma. Graças a essa nova arquitetura, Ometto poderá continuar com o mesmo poder tendo em mãos cerca de um quinto das ações que detém hoje, ou seja, menos de 10% dos papéis. A reação imediata dos investidores foi o susto, e a companhia perdeu 800 milhões de reais de seu valor de mercado em apenas dois dias de pregão (antes do anúncio, seu valor total era de 6,8 bilhões de reais). “Foi uma tungada nos minoritários”, afirma Celso Boin, analista da Link Corretora. Procurados por EXAME, os executivos da Cosan não puderam conceder entrevista porque estão em período de silêncio até o início das negociações nos Estados Unidos.

Parte das críticas foi rebatida pela Cosan numa teleconferência realizada no último dia 5. Por causa do período de silêncio, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) autorizou apenas que os executivos fizessem um pronunciamento, sem responder a perguntas dos ouvintes. “O acionista controlador continua sendo o mesmo. Nada mudou”, afirmou Paulo Diniz, diretor de relações com investidores. Não há nada de errado ou ilegal no novo modelo acionário escolhido por Ometto. E a Cosan está longe de ser a única empresa a lançar mão desse expediente. Empresas como Google e Ford também se aproveitaram de mecanismos semelhantes. O resultado, no caso do Google, é que os fundadores, Sergey Brin e Larry Page, detêm 20% das ações negociadas no mercado e mais de 60% dos votos. A família Ford, por sua vez, detém 3,7% das ações negociadas no mercado — e desproporcionais 40% dos votos. O maior escorregão dos diretores da Cosan, segundo analistas e especialistas em governança, foi o fator surpresa e a sensação de que houve certa quebra de contrato. “A Cosan não está dando tratamento igualitário a todos os acionistas, como prometeu quando entrou na bolsa”, afirma o advogado Luiz Leonardo Cantidiano, ex-presidente da CVM e um dos idealizadores do Novo Mercado. Na opinião de alguns profissionais, o mais provável é que a Cosan acabe sendo pressionada pela própria Bovespa a deixar o Novo Mercado. “A imagem desse segmento da Bovespa ficaria abalada se a Cosan continuasse a fazer parte do grupo de quem oficialmente preza pelos minoritários”, diz um analista.

Papéis superpoderosos

O que a Cosan fez…

– Criou a holding Cosan Limited, dona de 51% da Cosan brasileira, com sede nas Bermudas

– A holding abrirá o capital na bolsa de Nova York e também negociará papéis da nova empresa na Bovespa

– Em setembro, a companhia deverá propor que os investidores da Cosan na Bovespa troquem suas ações por outras do tipo classe A, com direito a um voto cada uma, da holding das Bermudas

– As ações dos controladores da holding terão direito a dez votos cada uma

– A operação pode resultar na saída da Cosan brasileira da Bovespa

…e a reação imediata do mercado

22 de junho 6,8

26 de junho 5,9

5 de julho 5,9

Fonte: Economática

SE ISSO SE CONCRETIZAR, será a primeira saída de uma empresa brasileira do Novo Mercado, que vem atraindo a esmagadora maioria dos novos lançamentos de ações no mercado brasileiro. Desde que foi criado, em 2000, 31 companhias abriram o capital e 24 delas escolheram o Novo Mercado como via de acesso ao mundo das ações. A eventual saída da Cosan desse grupo de elite coloca, pela primeira vez, uma questão para as companhias que já operam ou pretendem operar nesse nível do mercado — o ônus (e não apenas o bônus) de seguir à risca as práticas de governança e transparência. Não há dúvida de que a fabulosa expansão do mercado de capitais brasileiro se deve em grande parte à criação do Novo Mercado — capaz de atrair uma legião de novos investidores, sobretudo estrangeiros. No ano passado, a valorização das ações listadas nos níveis 1 e 2 e no Novo Mercado da Bovespa ficaram 17% acima da média de todas as demais que estão no mercado tradicional. Hoje, mais de 80% das ações negociadas pela Cosan estão nas mãos de investidores estrangeiros. O sucesso acabou implicando uma encruzilhada: se quisesse vender mais ações a fim de obter dinheiro para sua ambiciosa estratégia de expansão, Ometto corria o risco de perder o controle da companhia. Coincidência ou não, na semana que antecedeu o anúncio da nova estrutura acionária, circulou um forte boato de que a gigante americana de agronegócios ADM, maior produtora de etanol do mundo, estaria prestes a comprar a Cosan. “A opção de captar recursos em Nova York teve como principal objetivo garantir que Ometto se mantivesse no poder”, diz um profissional que participou da reestruturação. “Uma nova emissão no mercado brasileiro deixaria a empresa vulnerável a uma oferta hostil.” Com a abertura de capital em Nova York, a Cosan espera captar cerca de 2 bilhões de reais, que devem ser usados para continuar a compra de outras usinas de açúcar e álcool. A empresa, que hoje processa cerca de 40 milhões de toneladas de cana por ano, pretende aumentar em 50% essa capacidade até 2012.

Não há nada que proíba o uso do mecanismo de proteção utilizado por Ometto nos maiores mercados do mundo. Uma recente pesquisa realizada nos Estados Unidos indica que 6% das companhias que possuem capital aberto no país oferecem ações em duas classes, A e B, cada uma com um peso de voto. Algumas delas são extremamente bem-sucedidas, como o fenômeno Google, cujas ações valorizaram impressionantes 440% desde a abertura de capital, em agosto de 2004. Trata-se, porém, de concessões que o mercado faz a certas empresas. Em geral, os investidores pagam menos por ações emitidas no mercado com poder de voto diferente entre o controlador e os minoritários. No caso das companhias européias, aproximadamente um terço utiliza o mesmo recurso. Outra maneira de perpetuar os donos ou herdeiros das empresas no poder mesmo com uma parcela ínfima de participação, comum principalmente entre as empresas italianas, é uma infindável cadeia societária — o que em geral é muito malvisto pelos investidores. A Fiat, controlada pela família Agnelli, é um exemplo disso.

O Novo Mercado surgiu para corrigir uma distorção que havia no mercado brasileiro (e em nenhuma outra parte do mundo): a emissão de ações ordinárias, com direito a voto, e preferenciais, sem direito a voto algum. O novo modelo resultou de um minucioso estudo realizado pelos economistas José Roberto Mendonça de Barros, José Alexandre Scheinkman, Luiz Leonardo Cantidiano e Antonio Gledson com as melhores referências de práticas de governança em mercados de capitais em todo o mundo. Um dos maiores exemplos estudados foi o Neuer Market alemão, criado em 2000 para abrigar as novas empresas que estavam surgindo com o advento da internet (em mercados mais maduros, como em Nova York e Londres, não há um segmento específico para agrupar as empresas com níveis mais avançados de governança). “No Brasil, a criação de normas rígidas foi necessária para incentivar o aprendizado do relacionamento de eqüidade entre o acionista controlador e os minoritários”, diz Cantidiano. “Talvez as regras devam ser revistas para checar se há brechas jurídicas que permitam abusos do controlador.” Ainda é cedo para definir o impacto do episódio protagonizado pela Cosan no mercado de capitais brasileiro. Mas está claro que se trata de uma oportunidade para que controladores, investidores e os próprios reguladores do mercado repensem a eficiência do modelo.