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A África: entre o Brasil e a China

A China já é o terceiro parceiro comercial do Brasil e do continente africano. O que há de espetacular nessa ascensão é que ninguém duvida que daqui a menos de duas décadas seja provavelmente o primeiro parceiro de ambos.

A África chegou à última década do século passado com poucos amigos e muitos problemas. O ímpeto brasileiro da década de 70 já se tinha perdido. O Brasil já lutava contra um crescimento pífio e uma crise inflacionária. As suas prioridades eram a aceitação de sua parceria estratégica com os Estados Unidos. Os chineses, por sua vez, mantiveram-se fiéis à sua relação pouco custosa com a África, já que seus interesses pareciam ser de longo prazo.

Surpreendentemente, a África começa bem este novo século. O crescimento à volta dos 2,4% do PIB nos anos 90 deu lugar a um aumento de cerca de 4% anuais entre 2000 e 2004, tendo ultrapassado os 4% em 2005 e esperando-se que um grupo superior a 27 países ultrapasse os 5% em 2007. A proporção da África na produção econômica mundial cresceu 5,5%, ou seja, mais do que qualquer membro da OCDE. A inflação média no continente é de um dígito, e em mais de 30 países está abaixo dos 5%.

O crescimento do Investimento Estrangeiro Direto (IED) com destino africano cresceu 200%, entre 2000 e 2005 (de US$ 7 bilhões para US$ 23 bilhões), enquanto a Ásia ficou com um crescimento de apenas 60%. O ponto de partida da África é mais baixo, mas ainda assim os números são espetaculares e a tendência continua a ser de consolidação. As exportações africanas cresceram 25% em média nos últimos três anos, uma performance igual à da China.

Essa evolução não seria possível sem a redução drástica dos conflitos violentos no continente, que passaram de 15 a praticamente três: Darfur, Somália e pequenos resíduos nos Grandes Lagos (Congo Oriental, Burundi e Norte do Uganda).

Todo o continente abraça com entusiasmo as novas tecnologias, capazes de catapultar o progresso para o continente mais jovem do planeta. A África tem o maior crescimento de telefonia celular do mundo. Entre 1998 e 2003 o crescimento do setor foi de 5.000%. O número de africanos com acesso a redes de telefonia passou de 10% em 1999 para 60% em 2007, prevendo a revista “The Economist” que em 2010 chegará a 85%. Os africanos também já se beneficiam de acesso à televisão digital. Existem vários canais de noticiário “24 horas” exclusivamente dedicados à África.

Muitos analistas acreditam que o novo interesse pela África é parecido com a onda dos anos 50 a 70. Nessa época, países europeus e, em menor escala, os Estados Unidos, almejavam um lugar cimeiro na importação de matérias-primas africanas, sobretudo minerais. Claro que esse tipo de sede tem algo a ver com o novo interesse pela África. Os protagonistas externos são outros – China e Índia em particular – ou têm estratégias novas – Estados Unidos tentando diversificar as suas importações de energia.

A China não esconde o seu apetite pelas matérias-primas africanas. O benefício principal do crescimento chinês tem sido o aumento da procura de certos insumos básicos em nível mundial. A China jogou os preços de alimentos e matérias-primas, como o petróleo, o ferro e o manganês, nas alturas. O peso comercial do país no mundo saltou de 1% para mais de 6% em menos de duas décadas. A China é o principal importador mundial de algodão, cobre, soja e o quarto maior de petróleo. O crescimento da demanda chinesa em cobre e soja é de 50% anualmente; de petróleo cerca de 10%, o que é gigantesco.

Não é, portanto, de admirar que a China se tenha tornado um parceiro indispensável para a África, como também para o Brasil.

O comércio entre a China e a África passou de US$ 3 bilhões em 1995 para mais de US$ 40 bilhões atualmente, esperando o “Financial Times” que atinja os US$ 100 bilhões daqui entre cinco e dez anos. Esse montante é equivalente a todo o comércio externo brasileiro, mas representa apenas entre 10% a 20% do comércio africano.

A África tem na China mais do que um mero comprador: obteve também aí uma nova fonte de ajuda e investimento. A China tem participado no IED à África com cerca de US$ 1 bilhão anuais, desde 2004, representando um aumento de 300%. Os países africanos de língua portuguesa têm recebido cerca de 10% desse total, a comparar com o pífio desempenho do Brasil, estimado em menos de US$ 10 milhões. A China anunciou no ano passado a concessão de US$ 5 bilhões em empréstimos preferenciais, o que provocou a ira do Banco Mundial, que acusa os bancos chineses de não terem escrúpulos e de estarem afetando os ganhos em matéria de governança. A China hoje começa a ter um peso macroeconômico nas decisões africanas mais importante que as instituições de Bretton Woods.

A chegada ao poder do presidente Luís Inácio Lula da Silva representou uma nova etapa nas relações brasileiras com a África. Desde o início, dois objetivos estratégicos do presidente – o reconhecimento do problema racial no Brasil e uma política externa privilegiando uma parceria estratégica do Sul – tiveram um enorme impacto no continente.

As sucessivas visitas do presidente a 17 países africanos, a tomada de posição em fóruns internacionais, a defesa do interesse comercial dos mais pobres na OMC e a política de aproximação cultural foram elementos importantes nas esferas de decisão do continente. O comércio externo com a África cresceu 26% por ano desde 2004. O saldo positivo para o Brasil é da ordem de US$ 640 milhões.

Estes indicadores, embora importantes, são relativamente modestos quando comparados ao esforço chinês. O presidente Hu Jintao, seu primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores, só em 2006, visitaram cerca de 40 países africanos. A China mantém embaixadas em quase todos os países africanos desde as suas independências.

A China busca no Brasil o mesmo que na África. Alimentos, nomeadamente soja, e minérios (ferro em especial). Em troca, exporta produtos manufaturados para o Brasil. O potencial concorrencial do Brasil com a China pode vir a ser baseado em produtos iguais aos da África, com baixo valor agregado. Deveria, pois, ser do interesse do Brasil ter na África uma estratégia parecida com a da China, onde poderia fortalecer a sua posição de exportador de produtos de elevado valor agregado e de parceiro na área industrial e de novas tecnologias.

Um bom exemplo desse potencial diz respeito às energias limpas que o Brasil domina tecnologicamente e que têm enorme procura internacional. O Brasil nunca poderá produzir etanol ou biodiesel em quantidade suficiente para o consumo mundial crescente. Existem poucas áreas no mundo com capacidade ecológica para comportar essa expansão de energias renováveis. A África é uma delas e o Brasil deveria posicionar-se para tirar partido de um alvo que traz vantagens mútuas.

Os africanos têm uma percepção firme sobre os chineses: parceiros de longo prazo, presentes nos momentos difíceis, que não impõem o que fazer, que não se imiscuem nos processos políticos internos e que são totalmente previsíveis no plano externo.

O Brasil, por seu turno, tem de decidir de uma vez se o seu relacionamento com a África vai-se pautar pela “dívida de solidariedade”, na expressão feliz do presidente Lula, ou pelo vaivém das oportunidades. Não há nada de negativo em tentar conferir um substrato econômico ao relacionamento do Brasil com o continente. Mas não basta.

Carlos Lopes, atual subsecretário geral da ONU e diretor-executivo do Instituto das Nações Unidas para a formação e pesquisa (Unitar). Foi representante das Nações Unidas no Brasil até 2005.